Colagem. Créditos: Diogo Gomes e Pedro Henrique Cabo.

Onde se encontram os negros no mercado de trabalho

Expectativas dos pretos e pardos que estão e continuarão a conquistar seu espaço

Página Dezenove.
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8 min readSep 4, 2020

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Escreveram Diogo Gomes, Fábia S Oliveira, Isabelle de Oliveira e Vivian Bonaço.

Ainda é necessário falar sobre as relações de desigualdade racial no mercado de trabalho brasileiro. Enquanto majoritariamente brancos ocupam cargos de prestígio, o número de pessoas negras nos subempregos é alto. Segundo o portfólio ‘Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil’, de 2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto 68,6% dos cargos gerenciais de empresas são ocupados por brancos, apenas 29,9% são destinados a pessoas pretas ou pardas. Dados que podem ser justificados por outros números discrepantes encontrados na educação: dos 10 milhões de jovens brasileiros que não completam o ensino básico, 71,7% são negros.

A grande maioria desses jovens deixa de frequentar a escola para trabalhar em “subocupações”, onde o IBGE constata a maior força de trabalho no País. Num universo de 57,7 milhões de pessoas nessa categoria, apenas 46,1% deste índice se relaciona a pessoas brancas. O mesmo estudo aponta que negros são maioria também nos trabalhos informais: 47,3% contra 34,6%, representado por pessoas brancas.

Ambulantes comercializam seus produtos no metrô de Recife-PE. FOTO: Bernardo Dantas/Folhapress. Reprodução: Folha de São Paulo.

A informalidade, onde pretos e pardos são maioria, se associa muitas vezes ao trabalho precarizado e a falta de proteções sociais, como a remuneração do salário mínimo e o direito à aposentadoria. A falta desses direitos aproxima a imagem social de cidadãos negros à marginalidade, colocando-os cotidianamente na posição de descrédito e, como consequência, lançando-os para longe de um patamar de excelência.

A luta de pessoas pretas pela conquista de seus direitos iguais perante à realidade do trabalho é contínua. Seja na informalidade ou não, essas pessoas têm conquistado seu espaço e mostrado que suas raízes são excêntricas e oriundas de um povo que construiu o Brasil de hoje sobre suas costas. Também com índices referentes ao ano de 2018, o IBGE comprovou em estudo que negros se tornaram maioria nas universidades públicas: 50,3%. O índice fora alcançado em grande parte pela participação de pretos e pardos nas ações de políticas públicas reparativas aplicadas a partir dos anos 2000, como o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e a implementação de cotas.

Além das transformações na rede pública, o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e o Programa Universidade Para Todos (ProUni) têm feito pontes para pessoas pretas. 53,4% dos estudantes da rede particular frequentam o ensino superior privado com o auxílio de bolsas ou empréstimos públicos que garantem sua inserção nos centros universitários. Dados animadores que comprovam: pretos e pardos estão e continuarão a conquistar seu espaço.

A importância de ocupar todos os lugares

Mariana Tancredo, 23, profissional da área da saúde, passou por diversas situações que a fizeram perceber que era diferente da maioria das pessoas com quem convivia. Ela sempre frequentou espaços hegemonicamente brancos; entretanto, nem sempre entendeu de fato o que a distanciava.

Mariana Tancredo. Reprodução: Arquivo Pessoal.

Para a jovem, conseguir se reconhecer como negra não era tão perceptível assim, embora sua origem estivesse estampada na pele, no cabelo, no rosto e nos traços. Todas essas características somadas aos episódios em que a sociedade apontou sua etnia constantemente entre olhares de desconfiança nas ruas, abordagens policiais nada amigáveis e tratamento diferenciado em estabelecimentos mudaram sua perspectiva. “Eu tinha um pouco daquela ideia de que somos todos iguais e de que a democracia racial existe”, diz.

Na verdade, tornou-se ainda mais difícil para ela constatar o óbvio. Afinal, a história e ancestralidade de seu povo vêm de um processo histórico de escravidão e, como se não fosse o bastante, deturpações do imaginário social provocaram estereótipos em toda a população negra, massacraram identidades. Homens e mulheres desacreditados de suas potencialidades, envergonhados de suas características e pertencentes a um grupo que tem o corpo tido como feio, um cabelo por definição “ruim” e os lábios denominados beiços.

Independentemente das circunstâncias que foram impostas durante sua vida, apenas por ser negra, Mariana nunca pensou em desistir de seguir a profissão que sempre sonhou. “Não iria deixar que o racismo e as pessoas pudessem ditar onde eu poderia estar e o que que eu poderia ser nem mudar o meu sonho”. Desde pequena, ela já sabia que seguiria a carreira da saúde, mas ainda tinha dúvidas quanto à profissão certa. Além do seu interesse em estudar o corpo humano, sempre gostou de estar em contato com as pessoas para ajudar e fazer a diferença. Na medicina, encontrou uma oportunidade para unir todos os seus gostos.

Bati o martelo definitivamente quando passei por uma situação em que meu tio teve um câncer de estômago e notei como o médico foi fundamental nesse processo. Eu fiquei admirada pelo apoio e suporte emocional do corpo médico com minha família, pois, por meio da atitude deles, meu tio, minha família e eu passamos a encarar a doença de uma forma mais otimista. Foi então que percebi o que a medicina significava para mim e decidi seguir a profissão”.

Segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT), menos de 2% dos médicos no Brasil são declaradamente negros. Não por acaso, Mariana nunca foi atendida por um médico ou médica negra durante sua infância e adolescência. Para combater a desigualdade racial no meio acadêmico, esforços têm sido feitos. Criado em Belo Horizonte no ano de 2015, durante um congresso de estudantes de medicina, o Coletivo NegreX conta com mais de 400 participantes, entre médicos e estudantes de medicina de todo o Brasil, e atua como um ponto de acolhimento entre todos aqueles que se identificam pela sua cor e vivências.

Porém, faltava um senso de representatividade interna para Mariana e demais alunos que conhecia. A Unigranrio, onde estuda, era, até então, a única faculdade da região metropolitana do Rio de Janeiro sem um núcleo do NegreX. “Fundamos o coletivo local com o intuito de ampliar a pauta racial dentro do nosso meio acadêmico, a fim de gerar uma consciência racial que pudesse desenvolver, especialmente aos alunos não-negros, por meio de palestras e debates, a construção de um olhar mais humanitário na formação e exercício da medicina”.

Mais do que sua profissão, a medicina foi o ponto de partida no reconhecimento da negritude de Mariana. Durante um atendimento com uma jovem negra — aproximadamente 25 anos-, a identificação que a paciente teve em ser consultada por uma outra mulher negra foi muito mais que uma consulta, foi uma troca de significados. Mariana pôde perceber que foi um ponto de referência para aquela menina, e como a representatividade é importante para nós negros, pois ela entra como fator importante na construção da subjetividade e identificação. “Então, naquele momento, entendi que minha cor importa e decidi entrar na luta”.

Quem se comunica com a maioria?

Dentro da comunicação, os números não são animadores. De acordo com os dados divulgados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), apenas 22% dos jornalistas em postos formais são negros. E os apresentadores ocupam um número muito inferior: 3,7%. Essa baixa representatividade não significa falta de profissionais, mas sim a ineficiência em inserir profissionais negros no mercado e o reflexo da ausência das pautas antirracistas dentro das faculdades.

Diego Francisco. Créditos: Oscar Cabral.

Segundo o jornalista e mestre em relações étnico-raciais Diego Francisco, 33, é dever das universidades oferecer disciplinas antirracistas para auxiliar na formação do jornalista. “Quando você entra na universidade, você aprende muitas coisas que nunca viu, nunca teve conhecimento antes. E por que não lidar com a questão racial nesse ambiente de formação, nesse ambiente informativo? E não só para jornalistas, a comunicação de uma forma geral é muito responsável pela produção de imagens. Então, quem estuda cinema e não estuda relações raciais, vai ter uma lacuna incontornável. Quem estuda publicidade e não fizer esse processo, também”.

Durante a onda de manifestações antirracistas que ocorreram ao redor do mundo após a morte do homem negro George Floyd, o canal de notícias Globo News veiculou, no dia 3 de junho, uma edição histórica do telejornal Em Pauta, com a inédita participação de seis jornalistas negros do Grupo Globo para discutir questões raciais. O programa foi reexibido pela Rede Globo na mesma semana, numa edição especial do tradicional Globo Repórter e está disponível no serviço de streaming Globo Play.

Da esquerda para a direita: Maria Júlia Coutinho, Aline Midlej, Flávia Oliveira, Lilian Ribeiro, Zileide Silva e Heraldo Pereira. Reprodução: Em Pauta, Globo News.

Diego afirma que o programa foi um marco para se sentir representado dentro do jornalismo enquanto luta e contribui na formação de pessoas pretas. Contudo, alerta para uma “guetização” quando pessoas pretas são chamadas apenas para falar sobre racismo: “Por que o especialista sobre higiene não é um cara preto? Por que o especialista sobre genética não é um geneticista preto? Por que a gente não pode produzir nessa nossa imprensa? Por que o comentarista de economia não pode ser preto? Por que o comentarista de política não pode ser preto? É por isso que a gente fala não só de diversidade, mas de pluralidade, de trajetória”.

A luta por uma sociedade onde o racismo não exista mostra uma visão, ainda que homens e mulheres negras sejam de origens diferentes e percorram trajetórias diferentes. Diego relembra que o processo histórico de formação do Brasil foi baseado no racismo e fisicamente modelado em construção de espaços e territórios de exceção nas cidades. Ainda que superada essa barreira, grande parte dos empregadores tem a preocupação em selecionar candidatos com ‘boa aparência’. O padrão eurocêntrico, muitas vezes, se sobrepõe às qualificações na hora da contratação.

Para o jornalista, o combate aos efeitos desse processo acontece pela luta antirracista, que, na sua opinião, deve ser o principal movimento de transformação das estruturas sociais. E nela podem se incluir pessoas brancas, desde que se conscientizem, abram mão de seus privilégios e trabalhem juntos para que todos ocupem os mesmos lugares.

“A gente precisa trabalhar para ser muito, para ter muito jornalista preto na redação, para que a gente tenha muitos professores negros e muitas professoras negras, para que a gente tenha muitos negros e negras em todos os espaços e a gente possa se ver, se encontrar”.

Assine a petição da Coalizão Negra Por Direitos. O manifesto “Com Racismo, Não Há Democracia” luta contra o genocídio, contra a violência policial sofrida e contra o sistema judiciário que encarcera desproporcionalmente a população negra. Sua ajuda faz diferença na construção social do país.

“A carne mais barata do mercado não está mais de graça. O que não valia nada, agora vale uma tonelada (…) Os pretos avançam. Wakanda Forever yo!”

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Um coletivo de jovens da Baixada e da ZO em busca de boas histórias.