Na esquina da memória
Homenagens a temas e notáveis se cruzam por locais públicos das cidades sem deixar evidentes na consciência popular suas histórias completas
Este é um artigo de opinião.
Escreveu Lucas de Andrade.
Para ir ao centro da minha cidade, Nova Iguaçu, seja a trabalho ou a lazer, preciso pegar a única linha de ônibus do meu bairro. Saio de casa e caminho pela minha rua cujo nome faz menção a um comendador. O que este senhor fez de tão importante para merecer esse título? Não sei. Na verdade, nós, os moradores, sequer sabemos quem foi este homem.
Existem três opções de ponto para que eu pegue o ônibus. Os dois mais próximos da minha casa, coincidentemente, estão à frente de duas escolas municipais que homenageiam em seus nomes notáveis educadores. Como estratégia para que eu entre no ônibus antes de lotar sua capacidade, geralmente vou a um ponto — o terceiro — mais distante, anterior aos citados acima.
Lá fico eu. Sem sombra se o sol de tão radiante queima a pele, sem cobertura que não seja o guarda-chuva se o tempo fecha. Nomeia o logradouro do meu ponto preferencial um político muito influente anos atrás. Inclusive, seu neto faz história no serviço público municipal atualmente por ser o mais antigo funcionário em atividade.
Essa mesma rua vai até uma região mais próxima do centro, mas transitá-la em linha reta num veículo seria impossível porque a BR-116, popular rodovia que leva o nome do ex-presidente Eurico Gaspar Dutra no trecho Rio de Janeiro-São Paulo, interrompe sua extensão. Porém, do outro lado da importante estrada, a rua continua a levar o mesmo nome.
Um cruzamento a encerra. Coronel Francisco Soares, um militar e político português do Século XVIII, nomeia o restante do percurso. Ao final da metragem, já bem próximo às lojas do calçadão, faz esquina com a avenida que homenageia o ex-governador Francisco Portela, nomeado ao cargo por marechal Deodoro da Fonseca, assim que foi instaurada a República, no fim do século XIX.
Toda essa teia sobre trajetos tão próximos de mim me fez pensar no debate do revisionismo histórico. Me intriga não conhecer todos esses personagens a fundo. Não precisamos ir tão longe para refletir sobre personalidades que, de uma forma ou outra, são cultuadas e legitimadas no espaço público. Na maioria dos casos, sem o conhecimento completo acerca de suas biografias.
Precisamos conhecer mais sobre as memórias que preenchem a vida das nossas cidades. Se não houver compatibilidade com os ideais progressistas de nosso tempo, suas trajetórias precisam ser refletidas, problematizadas e seus feitos, questionados. Acompanhei nos últimos dias, com cautela, as discussões sobre a permanência de monumentos controversos em cidades de todo o mundo.
Um acerto de contas com o passado
Após George Floyd, um homem negro, morrer sufocado por Derek Chauvin, um policial branco da corporação de Minneapolis, nos EUA, todos voltaram seus olhos para a dinâmica historicamente racista que estrutura de forma condenável sociedades no mundo inteiro.
Protestos antirracistas foram desencadeados em resposta à morte de Floyd. Instantaneamente, começaram a viralizar pela internet vídeos de manifestantes em ação pela derrubada de estátuas. Embora haja um movimento antigo em território estadunidense contra a permanência de símbolos questionáveis, como as imagens que engrandecem o extinto Exército dos Estados Confederados, o ato de derrubada de estátuas que mais alcançou repercussão não aconteceu nos EUA.
Na pequena cidade inglesa de Bristol, a estátua do traficante de escravos Edward Colston foi arrancada e atirada a um rio pela multidão que protestava. Ele foi responsável por levar centenas de milhares de cidadãos da África Ocidental para locais onde o sistema escravagista e colonial estava em execução, como em países da América do Norte e Caribe. Atos semelhantes contra monumentos de dominadores, exploradores e genocidas foram registrados em outras cidades do mundo.
A prefeitura da cidade anunciou que a estátua foi recuperada e que ela seria levada a um lugar à salvo do público para posteriormente ser preservada e exposta em um museu, onde vai se tornar parte da coleção. Contanto que os responsáveis pela curadoria do local criem uma narrativa e ajustem o objeto para ser contado a partir de sua remoção pelo movimento antirracista, tudo bem. Mas quem pode afirmar que isso vai acontecer?
Se não basta a remoção de estátuas controversas para reparar a história, ainda que um museu possa ajudá-la a ser reescrita, o interesse do poder público precisa sinalizar um engajamento pró-revisionismo. Monumentos controversos como a estátua de Colston constrangem pela dor trazida, foram erguidos para celebrar a manutenção patrimonial e de poderio de limitados grupos. Se permanecem em locais públicos com opulência sobre um pedestal, a glorificação perpassa sua existência.
Sobe um combatente popular, desce um inimigo da liberdade
Não foi exatamente com a abordagem do racismo nem pela representação de estátuas que eu soube pela primeira vez de algo que remetesse ao revisionismo histórico. Em 2014, o Governo do Estado da Bahia alterou oficialmente o nome de um colégio estadual, que levava o nome do ex-presidente do regime militar Emílio Garrastazu Médici, para Carlos Marighella, guerrilheiro baiano e líder do grupo armado de resistência à ditadura Ação Libertadora Nacional.
O secretário estadual de Educação à época da mudança, Osvaldo Barreto, esclareceu que, pela regra geral, a própria comunidade escolar indica ou solicita modificações para os nomes dos colégios estaduais. O desejo era antigo. A professora de Sociologia da escola assumiu a responsabilidade de apresentar as personalidades candidatas aos alunos do 3º Ano. Além de Marighella, o geógrafo Milton Santos havia sido sugerido e foi o segundo mais votado entre os estudantes.
Na época, não exerci o trabalho de reflexão necessário. Pelo conhecimento que tinha, fiquei feliz com a substituição. Mas, hoje, entendo correntes da opinião pública que pensam reescrever a história de maneira incorreta se medidas como essas são tomadas. Apesar de entendê-las, não concordo.
Existe um contrassenso quando uma escola deste século, que preza pela pluralidade de conhecimentos, carrega em seu nome um personagem cuja visão de educação baseava-se na doutrinação moral e cívica. E que, pelo autoritarismo, detinha as narrativas: As histórias que podem ou não ser contadas. As figuras que podem ou não ser elogiadas. Durante a rigidez de regimes políticos como a ditadura militar, a comunicação sempre foi trabalhada para macular reputações e distorcer histórias.
Porque figuras autoritárias não permitem contestação, não dividem holofotes, não admitem suas fraquezas e o lado obscuro que escolheram ocupar. Precisam se engrandecer a partir de seus defeitos para diminuir seus opositores justamente nas qualidades que eles têm. E assim, ao menor sinal de poder, radicalizam a aposta. Consideram que nada tem a perder. Como absolutistas, mandam e desmandam. Mas a história tudo registra. Algo parecido com o que vivemos hoje?
A extrema-direita frequentemente difama trajetórias de personalidades idôneas como Darcy Ribeiro, Paulo Freire e outros. Sérgio Camargo, à frente da Fundação Palmares, entidade vinculada à Cultura que tem o objetivo de preservar manifestações afrobrasileiras, talvez seja o maior exemplo desse arbítrio hoje. O político age contra as atribuições históricas de seu cargo. Salles faz o mesmo com o Meio Ambiente, Weintraub fazia com a Educação. E assim vai.
Opina daí que eu opino daqui
Vera Magalhães, jornalista e apresentadora do Roda Viva, provocou um longo debate ao se posicionar contra o movimento revisionista. Ela usou o exemplo de Auschwitz, campo de concentração usado pelo regime nazista para tortura e horror durante a 2ª Guerra Mundial, que está aberto à visitação “para que não se repita o mal”.
Embora esteja certa sobre como as autoridades alemãs preservam o local a partir de uma ressignificação, a comparação com os episódios recentes protagonizados por movimentos antirracistas carece bruscamente de sentido. Somente poderia ser aceita se lá em Auschwitz houvesse estátuas de Adolf Hitler, do médico nazista Josef Mengele ou de qualquer outro cúmplice fascista. O que não existe.
Ao longo da discussão aberta em sua rede, a jornalista disse temer que o revisionismo ganhe novos contornos, como se o movimento pudesse ser instrumentalizado para o bem ou para o mal. O jornalista e escritor Laurentino Gomes aderiu à mesma corrente de Magalhães.
Ele afirma que imagens como a do bandeirante Borba Gato devem ser preservadas “como objetos de estudo e reflexão”. Porém, compreendo que a permanência desses símbolos, sem os devidos questionamentos em torno de sua representação, apenas acirra uma tensão social provocada pela sua concepção.
Ainda que seja uma apreensão legítima, sobretudo se considerarmos o que políticos como Sérgio Camargo tentam fazer, a história pode não se enquadrar na narrativa que eles querem contar. Adiante serão passadas as tentativas de sabotá-la, até mesmo a sabotagem em si, mas sempre vai haver quem traga à tona os que tentam escondê-la.
Embora não seja infalível, tudo reporta. Me dói que às minorias não haja justiça. Me dói que a vida brasileira seja permeada por colonização, escravidão, golpes, ditaduras e desigualdade social. Porém, os registros, independentemente dos meios, estarão por aí para delatar o que foi feito do poder que estava nas mãos de quem malfez ou se absteve.
A história permanece nos atos. Desde o momento em que uma figura foi enaltecida em vida, ergueu-se uma estátua em sua homenagem e até mesmo quando pode vir a ocorrer ocasionalmente a destruição de seu monumento. Seus sentidos são diferentes, mas os efeitos históricos sempre existirão. Quando se depreda, vandaliza ou simplesmente ofende verbalmente, faz-se história também.
Laurentino, intencionalmente ou não, reforça a visão de que a história não passa de algo meramente material e estático. Todo processo, seja passado ou contemporâneo, e inclusive o que exercita o pensar no futuro, envolve engajamento social, transformação e, por que não, impulso? Eu jamais contestaria a legitimidade de um movimento antirracista que se insurge contra estátuas de figuras desprezíveis.
Afinal, quem foi ele?
Ainda aqui na Baixada, temos o município de Duque de Caxias. Antes mesmo de se emancipar da cidade de Nova Iguaçu há 86 anos, o então distrito já era chamado assim porque ali nasceu Luís Alves de Lima e Silva, que veio a ser nomeado Duque de Caxias, o patrono do Exército Brasileiro, alcunhado como “O Pacificador”.
Ale Santos, para a Vice Brasil, na coluna Guia Historicamente Correto do Brasil, tratou de revisar essa fama dias após Jair Bolsonaro citar Lima e Silva como um exemplo no discurso após sua vitória nas eleições de 2018. Sim, o marechal negociou e manteve a unidade do território nacional, o que interessava ao Império, porém a preço de 40 mil vítimas fatais reprimidas em manifestações populares.
Dois monumentos à sua imagem foram construídos: em São Paulo, na Praça Princesa Isabel, e no Rio de Janeiro, o “Panteão Duque de Caxias”, localizado em frente ao Palácio que também leva o nome do militar e abriga o Quartel-General do Comando Militar do Leste na região central da cidade.
De tudo que compõe essas obras, destaca-se a idolatria. Em São Paulo, o militar foi imortalizado em bronze platinado montado num cavalo sobre um pedestal de 48 metros de altura. No Rio, o monumento foi construído para preservar sua biografia, itens pessoais e restos mortais.
Gilberto Gil costuma dizer que “a seta do futuro do tempo é para frente”. Num tuíte publicado em 30 de novembro de 2018, ele completa sua argumentação ao afirmar que um amanhã de avanços humanistas não vem sem “atritos, luta, sacrifício e até retrocessos”.
Assim como ele, acredito esperançoso que os conflitos, que hoje acirram o mundo à uma cansativa polarização, nos levarão a um momento em que prestigiaremos a pluralidade de ideias baseada tão somente no respeito aos princípios cívicos. E essa discussão não exclui as simbologias e representações.
Me preocupa que, pelo menos aqui onde vivo, não sejamos instruídos a criticar o que nos cerca. São parques, ruas, avenidas e centros de conveniência construídos em memória a políticos, artistas, intelectuais que, além de merecerem melhor apreciação do poder público na hora de escolhê-los, também precisam ser trabalhados na consciência e no ambiente populares. Esse debate precisa chegar às periferias.
Se tanto nossos corpos expressam os ideais de igualdade e justiça, temos o direito de reestabelecer nas cidades uma ordem democrática e seletiva, para que não haja engano sobre os personagens que escolhemos celebrar, sobretudo de forma pública. E, de fato, não pode haver descanso até que símbolos da supremacia branca, que tanto (de)formaram nosso país, caiam um por um.