Foto: Sérgio Moraes, Reuters.

Um Rio cujos afluentes são as disparidades sociais

Diferenças territoriais, raciais, de classe e de gênero constroem o Rio de Janeiro que conhecemos, aponta o Mapa da Desigualdade 2020

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5 min readJul 16, 2020

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Escreveu Lucas de Andrade.

A renda média dos niteroienses chega a R$3.114, número 400% maior do que o recebido por quem vive em Japeri, cerca de R$694, abaixo do valor do salário mínimo nacional vigente (R$1.045). Os moradores da “Cidade Sorriso” também saem na frente quando se avalia a expectativa de vida: vivem, em média, 12 anos a mais que moradores de Queimados. Na cidade do Rio de Janeiro, essa relação alcança maior diferença entre os residentes de Ipanema e Rocinha. Quem vive no badalado bairro da zona sul da capital chega a viver 30 anos a mais. A distância entre os dois bairros não chega sequer a 10 km. Esses são alguns dos dados presentes no Mapa da Desigualdade 2020, elaborado pela Casa Fluminense e lançado nesta última quarta-feira (15).

Com o objetivo de “influenciar o debate público” e “potencializar e mobilizar lideranças sociais”, a organização elaborou a nova edição do Mapa. A última havia sido divulgada três anos atrás. O evento foi realizado em formato virtual através dos canais da instituição, no Facebook e no YouTube. O estudo divide as informações em 10 eixos temáticos: habitação, emprego, transporte, segurança, saneamento básico, saúde, educação, cultura, assistência social e gestão pública. Cada tema traz 4 indicadores socioeconômicos coletados a partir de 26 bases de dados — entre elas, fontes governamentais e iniciativas colaborativas da sociedade civil -, abrangentes aos 22 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro.

Reprodução.

Guilherme Braga e Taynara Cabral, coordenadores da pesquisa, conduziram a apresentação. Sobre emprego, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que, nacionalmente, trabalhadores formais e informais brancos recebem cerca de 75% a mais que pretos e pardos na mesma categoria. Microdados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do ano de 2018 revelam que, entre as cidades abrangidas pelo Mapa, a capital tristemente desponta com a maior diferença salarial entre brancos e negros: 42%. A menor distância foi pontuada em Guapimirim, que concentra o percentual em menos de 1%.

Na diferença de remuneração do emprego formal entre homens e mulheres, apenas nos municípios de Maricá e Queimados o gênero feminino aparece à frente em melhores médias salariais. Porém, na média calculada entre as cidades do Grande Rio, os salários de mulheres negras equivalem à metade do que os homens brancos recebem. O município de maior disparidade dos números apontados foi Itaguaí, onde a diferença entre homens e mulheres sem recorte racial chega a 33,6%.

Ao apurar dados mais recentes do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), o Mapa traz índices preocupantes do saneamento básico que ajudam a compreender a crise de abastecimento de água na região metropolitana do Rio de Janeiro. No início deste ano, moradores de diferentes localidades relataram mau cheiro, má qualidade e coloração inadequada da água, que teriam sido ocasionados pela presença de geosmina, segundo a CEDAE (Companhia Estadual de Águas e Esgotos).

Braga ressalta que, apesar de próximas à bacia do Rio Guandu, onde a companhia controla a maior estação de tratamento de água do mundo, as cidades de Itaguaí e Seropédica têm o percentual de 0,0% de esgoto coletado e tratado por habitante. Situação muito diferente do município de Niterói, que ostenta a marca de quase 98%. A cidade de Duque de Caxias, a maior em população da Baixada Fluminense — cerca de 900 mil -, tem ínfimos 1,1%.

As informações pertencem ao povo

Para a construção desta nova edição do Mapa, a equipe da Casa Fluminense estabeleceu uma metodologia que tornasse o processo de elaboração mais fácil, a atualização de dados mais eficiente e a construção de uma linguagem mais acessível, o que implica certos desafios. Guilherme ressaltou que, por força da Lei de Acesso à Informação (LAI), os municípios devem fornecer dados com prazos de resposta em até 20 dias, com acréscimo de 10, no máximo. Ele relembra que nem todas as prefeituras retornaram sua solicitação, mesmo 100 dias após as tentativas. Algumas sequer disponibilizavam formulário para contato via LAI.

Tornar esses dados, produzidos de forma descentralizada, em uma única plataforma informacional e a falta de um conjunto de informações a nível estadual multiplicaram as responsabilidades da Casa Fluminense. Taynara afirma que o uso de cores para facilitar a leitura gradual e a identificação de números mais graves foi uma estratégia didática, para que o Mapa não esteja restrito ao universo acadêmico. “Que o mapa seja usado em salas de aula, nas rodas de conversa. Para que mais pessoas possam se apropriar dessas narrativas, e que, de fato, empoderem-se, e cobrem de seus municípios e territórios”, reforça.

  • No site da Casa Fluminense, você pode solicitar o download gratuito da íntegra do Mapa da Desigualdade 2020. Serão solicitados seu nome completo, idade, e-mail, cor/raça, gênero, cidade e organização:

https://casafluminense.org.br/mapa-da-desigualdade/

Discutir o futuro a partir de problemas históricos

Após a apresentação, o debate “Desigualdades Estruturais, Desafios Emergenciais e o Futuro das Cidades” foi conduzido por Ana Carolina Lourenço, socióloga e co-fundadora do movimento Mulheres Negras Decidem, e Henrique Silveira, coordenador-executivo da Casa Fluminense.

Henrique destacou que a organização deseja apontar caminhos em uma travessia onde a pandemia do coronavírus, a crise político-institucional e a postura dos governantes atuais têm dificultado o progresso. E enfatiza na luta antirracista um norte: “Não dá para falar de desigualdades sem falar onde está o racismo”, disse após destacar que entre as populações mais pobres, as vítimas de violência policial e os que padecem pela falta de acesso à saúde pública de qualidade, a maioria é negra.

Ana Carolina ressaltou a concentração de renda como ponto-chave do estudo. Segundo a socióloga, o tema revela como as demais estruturas operam e se interseccionam no estado do Rio de Janeiro. Ela também reforçou a baixa representatividade feminina nas casas legislativas municipais como um fator agravante da má qualidade da democracia brasileira. Nenhuma cidade fluminense chega a 50% de ocupação feminina na vereança, como revela o Mapa.

  • Confira aqui toda a apresentação e o debate completo em torno do conteúdo do Mapa da Desigualdade 2020:

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