Interaction 20 | As 9 provocações que irão mudar a nossa forma de trabalhar

Maryanne Cury
pagsegurodesign
Published in
9 min readFeb 19, 2020

Agora em fevereiro rolou o evento mais conhecido (e relevante?) de UX no mundo, o Interaction 20. Durante os três dias de evento, ouvimos muitas provocações sobre inteligência artificial, ética, identidade, liderança, cultura, como mitigar nossos vieses e até mesmo como o design poderia influenciar na agricultura. Selecionei as que considerei mais impactantes e que definitivamente irão mudar a nossa forma de pensar e trabalhar e listei abaixo:

1. Qual o risco de não fazermos nada?

Marco Steinberg é o fundador e CEO da Snowcone & Haystack, uma empresa de design focada em ajudar governos e líderes a inovar. Sua apresentação, Plan Z: A case for redesign, trouxe diversas provocações sobre a necessidade de repensar e redesenhar o nosso sistema de tomada de decisões.

A humanidade evoluiu tanto no último século, que vai demorar 6 mil anos para dobrarmos o nosso progresso atual, e hoje já estamos nos deparando com processos e regras que nos impedem de resolver os problemas e pressões que temos em mãos. Somos instituições do século 18 resolvendo problemas do século 21.

Ter uma perspectiva de design pode mudar a conversa

Marco deixou claro que vê o design como um fator crítico na transformação do mundo como a gente conhece e está nas nossas mãos conduzir essa mudança. E mesmo as mudanças mais simples levam muito tempo para serem feitas, então se não redesenharmos os nossos processos agora, num futuro próximo iremos nos ver sem opções.

Passada essa responsabilidade para nós, ele encerrou deixando mais provocações sobre como iremos promover a disrupção em serviços e produtos complexos que não podem “parar”, já que afetam diariamente a vida de milhares de pessoas.

2. Democracia digital é para todos?

Audrey Tang, ministra de “digital” em Taiwan, responsável pela inovação social no país, fez uma apresentação por Zoom (primeira vez que vi isso num evento 😮) em que trouxe cases mostrando que é possível colocar a população do país em contato com a tecnologia a fim de engajá-los em debates cívicos.

Foi bastante inspirador ver como a digitalização de debates políticos diminuiu as barreiras da democracia, dando voz para todos a partir de tecnologias básicas e usando os dados coletados para entender melhor a população e suas necessidades.

Mas a pergunta que fica é: a democracia digital é escalável para outros países?

Taiwan tem apenas 24 milhões de habitantes e o governo incentiva tanto o uso da internet que a banda larga é um direito humano no país. Cerca de 87% da população está conectada. Será que em outras condições seria possível ter essa participação e engajamento? Quantos anos um país subdesenvolvido e emergente como o nosso levaria para avançar nessa direção? Hoje, no Brasil temos 209 milhões de habitantes, e apenas 127 milhões (60%) têm acesso à internet, de acordo com pesquisa feita pelo CGI, será que podemos considerar a digitalização dos debates políticos num futuro próximo?

3. Robôs são legais, mas pra que servem mesmo?

Dan Saffer — do Twitter e autor do livro Microinteractions, e Simone Rebaudengo — da oio.studio, trouxeram os robôs pra pauta do primeiro dia do evento.

Dan abordou o tema de forma bem prática nos lembrando que sonhar é legal, mas precisamos olhar a realidade também. No dia-a-dia já temos contato com vários robôs, e muitas vezes não nos damos conta: Alexa, Roomba, carros autônomos, Siri e etc.

A expectativa criada (antes mesmo de muitos de nós nascermos — lá nos anos 70) é de que os robôs seriam como a Rosie dos Jetsons, à nossa disposição resolvendo problemas complexos do nosso cotidiano e travando diálogos interessantes, mas segundo o Hype Cycle da Gartner essa tecnologia está no “vale da desilusão”, então temos duas alternativas: 1. rir dos vídeos internet a fora ou 2. aproveitar esse momento para trazer uma proposta de valor real ;)

Já Simone, trouxe provocações sobre que novas experiências e sistemas podem surgir quando desenhamos para necessidades não humanas. E nos convidou a tentar enxergar as coisas sob outras perspectivas, indo além da metáfora humana.

Também deixou algumas questões para refletirmos: robôs têm sentimentos? Estamos considerando desenhar sob a sua perspectiva? Estamos criando robôs para executarem tarefas idiotas?

4. Como impactaremos o futuro do trabalho?

O tema “futuro do trabalho” não abordou nosso futuro como designers, mas sim o futuro que nós estamos construindo para pessoas que podem ter suas tarefas substituídas por robôs e inteligências artificiais.

Aynne Valencia, diretora de Design da The City of San Francisco’s Digital Services, falou sobre como os sistemas que estamos criando agora irão afetar a economia durante décadas.

Quais as consequências das decisões que tomamos? Como estamos impactando o ambiente à nossa volta?

É importante lembrarmos que não estamos desenhando só pra hoje, pro agora, nosso design e soluções podem durar por gerações. E, se não tivermos cuidado, geraremos mais desemprego e desigualdade social.

Para termos consciência de que não estamos excluindo os humanos da equação no trabalho do futuro, podemos nos fazer perguntas como:

- Com os Robôs e AI estamos substituindo o trabalho humano ou o complementando?

- Estamos dando escolhas criativas e cognitivas para os humanos?

- Estamos criando processos com as pessoas no centro?

Aynne encerrou com um apelo: Como designers precisamos usar nossos privilégios para fazer a diferença para pessoas que não podem.

5. Quando iremos parar de tratar privacidade e segurança como um privilégio para nossos usuários?

Data Trust foi pauta de diversas palestras nessa edição do Interaction, começando com Andrew Hoppin fazendo um pedido: Design a data trust for your business.

Todos os dias vemos notícias por aí que ameaçam a nossa privacidade online e põe em dúvida como nossos dados são usados.

Privacidade e segurança não devem ser tratados como um privilégio para os nossos usuários.

Outras provocações também fizeram parte dessa pauta: as interfaces podem ser projetadas para serem realmente transparentes, informativas e compreensíveis com relação à privacidade de nossos usuários e ainda assim oferecer uma experiência agradável? Como nós garantimos que a ciência de dados é uma ciência do bem? Conseguimos saber o risco de perda de privacidade que estamos expostos online?

6. Nós fizemos o design ou o design nos fez?

Jane Wong, Diretora de Criação da Frog, trouxe provocações sobre o impacto dos dados, novas tecnologias, mídias e interações em moldar nosso ambiente social.

Nos últimos anos, aceleramos a maneira como as pessoas vivem e trabalham com novos serviços, ferramentas e métodos. Criamos prazer, conectividade e conveniência em lugares que não esperávamos. Nós criamos personas reais de AI e deepfakes na Internet. E agora, olhando em retrospecto, podemos nos fazer uma pergunta simples: era isso que a gente tinha imaginado? Nós realmente nos esforçamos para aplicar o melhor design ou o design para criar o melhor? Quando desenhamos, estamos pensando num ecossistema?

Nosso trabalho como designers é infinito e político, então precisamos usá-lo como ferramenta e não nos deixarmos deslumbrar pelos seus desdobramentos, o utilizando para um bem comum.

Por que precisamos das coisas tão rápido? Porque não podemos usar design para pensar lógicas de consumo, processos e motivações de criação?

Em diversos países não podemos mais nos esconder dos computadores, estamos sendo constantemente filmados, analisados e avaliados. Então mais uma vez, como estamos criando protocolos de privacidade que nos protejam? Como estamos desenhando o acesso, a segurança e a saúde desses sistemas?

7. Nossos designs alimentam vieses de gênero, identidade e a exclusão?

Gina Taha, UX Researcher, subiu ao palco do segundo dia com o tema Sexy vs Sexiest UX, em que falou como os vieses de gênero estão presentes no design e muitas vezes nem percebemos.

Sua palestra se concentrou nos erros cometidos nas recomendações, decisões de design e micro-interações, fazendo uma provocação de que se o segredo de uma ótima experiência é corresponder às necessidades do usuário, será que estamos fortalecendo preconceitos implícitos de gênero?

Gina citou vários casos, como por exemplo a interface de um carro, que se projetada para o público masculino, precisa refletir perfomance, precisão, força, exclusividade e inteligência. Mas para o público feminino precisa refletir empatia, suavidade, fácil de usar, cuidadoso, “não-complicado” e útil.

Estamos em posição de tomar essas decisões sabendo que a interface pode fechar portas e excluir um público potencial? Estamos focando nosso design em micro-interações ou micro-agressões?

“A linguagem visual que escolhemos dita as percepções e mensagens que colocamos no mundo”

Como boas práticas para mitigar esse cenário, ela recomenda que a gente preste mais atenção nos efeitos da linguagem de produtos:

Visual: diferenciando e se tornando mais seletivo sobre como expressamos ideais e vocabulário estabelecidos.

Ações: as estratégias que as pessoas empregam para realizar tarefas.

Interações: motion é uma ferramenta poderosa para comunicar semântica.

8. Podemos usar o design para combater o racismo?

Benjamin Evans, Design Lead do Airbnb, trouxe em sua palestra a provocação: podemos usar o design para combater o racismo?

Ele apresentou o case “Negative Space: What removing profile photos taught me about design’s ability to reduce discrimination.” que mostra como a sua equipe usou o espaço negativo para reduzir a discriminação e criar pertencimento.

Desde 2016 o Airbnb enfrenta a realidade de que hóspedes sofrem discriminação racial devido à cor da pele. Então o time de Evans levantou duas hipóteses: seria melhor remover as imagens de perfil ou seria necessário adicionar mais informações para aumentar a confiança entre as duas pontas?

Remover a foto realmente não resolve o problema da discriminação em si, inclusive poderiam estar criando outro, em que a discriminação sairia do mundo digital para acontecer no mundo real. E adicionar informações não trouxe impacto.

Então, o trabalho do time foi entender como mesclar as duas soluções focando em balancear os viéses de todos. Se quisermos criar produtos em que as pessoas de fato se sintam incluídas, devemos confrontar nossos viéses.

Ele ressaltou a importância de nos questionarmos quem pode ser impactado pelo o que estou desenhando, quem pode discordar do que estou desenhando, por quais lentes estou desenhando, quais detalhes da minha interface são injustos, e considerar o que fazer se premissas do projeto estiverem erradas.

9. Como vamos criar conexão com o outro?

Adeola Enigbokan subiu ao palco trazendo a referência do filme “A Chegada” para delinear o assunto central da sua palestra, Arquiteturas de Confiança, e explorar como podemos obter confiança no momento de encontro com o desconhecido, seja em produtos, serviços ou ambiente de trabalho.

Através de um storytelling ela trouxe contexto para as batalhas diárias que enfrentamos, seja conhecendo pessoas novas ou numa reunião com stakeholder.

Como podemos trazer contexto para ter um engajamento melhor entre diferentes partes, criando uma conexão em comum? O que podemos fazer para estabelecer a confiança e o que acontece quando ela se quebra? Que linguagem nós temos que aprender ou ensinar pra criar uma dinâmica de relacionamento com confiança? Qual a forma que moldamos os espaços ao nosso redor e a maneira como esses espaços, por sua vez, moldam as pessoas, ainda que por interação?

Concluindo

Foram três dias muito intensos e de muitos aprendizados. Essas foram as principais provocações que me fizeram enxergar por novas lentes, ver uma nova perspectiva.

É realmente necessário que a gente tenha consciência dos impactos do nosso trabalho, da nossa forma de trabalhar com nossos produtos e serviços.

Fica a reflexão: que tipo de designers queremos ser?

No próximo ano o tema do evento será Design in Perilous Times (Design em Tempos Perigosos), pois a crise ambiental, social e cultural que está rolando demanda nossa atenção como designers para construirmos as soluções e não gerarmos mais problemas.

Então a gente se vê em Montreal! ;)

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