A sociologia de Émile Durkheim

O estabelecimento da sociologia como ciência

Rodrigo Barros
Paiol
9 min readDec 12, 2016

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Muito já se escreveu sobre o sociólogo francês Émile Durkheim, razão pela qual este texto não se comprometeu a realizar uma análise inovadora do dito cujo. O que aqui pretendo é apenas expor um pouco da vida e da obra deste intelectual, com o objetivo de esclarecer e auxiliar os iniciantes e demais interessados nas Ciências Sociais.

Vida

David Émile Durkheim nasceu em 15 de abril de 1858, no seio de uma família judia, na região francesa de Lorena . Deixou de lado os estudos numa escola rabínica e posteriormente optou por uma educação secular, seguindo um caminho em alta numa França marcada pela ascensão do discurso da modernidade e da corrente positivista. Foi aprovado para ingressar na École Normale Supérieure, grande centro de formação da elite intelectual francesa.

Após a formação em filosofia, Durkheim lecionou em várias escolas francesas e depois mudou-se para a Alemanha, onde estudou ciências sociais e publicou vários artigos que lhe renderam renome internacional. Ao retornar para a França, tornou-se professor na Universidade de Bordeaux em 1887 e foi encarregado de assumir o curso de Ciências Sociais e Pedagogia, sendo o primeiro curso desta natureza na França.

Durkheim havia então chamado atenção para as ciências da sociedade e conseguiu introduzi-las tanto no ensino universitário como nos currículos escolares, mas sua maior pretensão era de render à sociologia uma reputação científica real, equiparada com as ciências exatas e naturais. É importante frisar que a sociologia, ao contrário da química ou da física, ainda não exista como ciência e sim somente como um projeto não concretizado.

Em 1893 publicou sua tese de doutorado, intitulada “Da divisão do trabalho social”, e também fundou a revista L’Anné Sociologique, onde divulga seus artigos científicos e de outros autores entusiastas da nascente sociologia francesa. Em 1895 publica “As regras do método sociológico”, onde procura definir o objeto e o método de análise próprios da sociologia, gerando grande alvoroço, críticas, elogios e reconhecimento para a sociologia como ciência autônoma, independente da filosofia social ou da psicologia. Veio a publicar outros livros no decorrer dos anos, como “O suicídio” e “As formas elementares da vida religiosa”.

Foi convidado em 1902 a assumir o cargo de professor suplente de pedagogia na prestigiada Universidade de Sorbonne, Paris, para em 1906 torna-se titular da disciplina e em 1913 assumir a recém criada cátedra de sociologia. Devido ao início da I Guerra Mundial e a morte prematura do seu filho no conflito, Durkheim ficou emocionalmente abalado e veio a sofrer um acidente vascular cerebral, falecendo no dia 15 de novembro de 1917, em Paris.

Contexto e influências

Como praticamente todos os intelectuais do século XIX, Durkheim foi fortemente influenciado pelos fenômenos e impactos da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, bem como pelos ideais do iluminismo. A defesa radical da razão como único método de se apreender o mundo e a crença na lei do progresso como algo que move a humanidade rumo ao aperfeiçoamento constituíam a atmosfera intelectual da Europa Ocidental, reforçada por muitos pensadores como Saint-Simon (1760–1825) e Auguste Comte (1898–1857), importantes referências no pensamento durkheimiano.

A ordem que existia antes da 1789 fora varrida pelos revolucionários de franceses. Uma nova sociedade deveria surgir, com uma nova organização política e social, atendendo demandas de diversos grupos. Esse movimento também era visto como necessário para se adequar ao crescente ritmo da industrialização e sua inerente força de transformação, que esvaziava o meio rural e lotava as cidades de uma massa de trabalhadores.

O evolucionismo de Charles Darwin também encontrava terreno fora da biologia, como na obra do filósofo inglês Herbert Spencer (1820–1903), pai do chamado “darwinismo social” (embora esse apelido mais distorça do que caracterize seu pensamento). Durkheim também sofreu influências da filosofia racionalista de Immanuel Kant, do organicismo alemão e das teorias socialistas. Acabou vendo nas Ciências Sociais, em especial na sociologia, uma das maneiras de se compreender e prever os movimentos da sociedade moderna que tomava forma. Restava a ele render a cientificidade que faltava para este campo de estudos ainda mal explorado.

Teoria sociológica

A primeira grande contribuição de Durkheim para a sociologia é a proposição de um método científico autônomo, positivo, capaz de alcançar o mesmo nível de confiabilidade e prestígio das outras ciências já consolidadas no século XIX. Em “As Regras do Método Sociológico”, Durkheim dirá que a primeira e mais importante regra da sociologia é “a de considerar os fatos sociais como coisas”.

Ao equiparar os fatos sociais como “coisas”, Durkheim afirmava que o mundo social era passível de ser estudado da mesma forma que o mundo natural, com objetividade e independente das ações individuais, buscando observar suas regularidades da mesma maneira que um químico observa um fenômeno no laboratório. O sociólogo deveria deixar de lado suas pré-noções para poder tratar os fatos sociais com imparcialidade, como fenômenos exteriores ao universo psíquico dos indivíduos e assim obter resultados válidos, elaborar leis e até prever ações. A obra de Auguste Comte exerceu forte influência na construção desses pressupostos.

Mas o que é um fato social? Durkheim afirma que:

é fato social toda maneira de fazer, fixa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou a ainda, que é geral na extensão de uma dada sociedade que tem uma existência própria, independente de suas manifestações individuais.

in “As regras do método sociológico”, Editora Edipro, 2012, p.40.

Dessa definição podemos destacar três aspectos clássicos correspondentes aos fatos sociais: exterioridade (os fatos sociais localizam-se na sociedade e não nos indivíduos, independente das suas consciências), coercitividade (são impostos aos indivíduos pela sociedade, forçando-os a agir dentro de regras) e generalidade (são válidos para toda a coletividade e não somente para um ou outro indivíduo).

Durkheim parte do pressuposto que a sociedade precede os indivíduos, sendo mais do que a mera soma dos mesmos. É a sociedade que condiciona os sujeitos, e não o contrário. Para esclarecer esse ponto, imaginemos uma pessoa que acaba de nascer: ela receberá um nome que não escolheu, assim como uma nacionalidade e um gênero ao qual pertencer independente da sua vontade; também será forçada a aprender o idioma falado pelos outros ao seu redor caso queira se comunicar, e terá que se adequar aos padrões normativos culturais e jurídicos daquela sociedade, vestindo certas roupas, evitando alguns comportamentos, optando por caminhos definidos e reprimindo impulsos que sejam vistos como negativos. Todos esses exemplos que citei tencionam mostrar, grosso modo, como a sociedade já está pronta antes do indivíduo nascer e como ela define as ações deste, independente das suas escolhas.

Durkheim não sugeriu que a sociedade poderia existir sem os indivíduos, mas sim que, após serem criadas pelos indivíduos, as instituições sociais se tornam independentes deles, gerando dinâmicas que permanecem para além dos sujeitos. Esses fatos sociais acabam por sendo naturalizados, seguidos de forma inconsciente, ao ponto dos sujeitos não se darem conta que obedecem construções sociais. Caberia a sociologia explicar como essa totalidade condiciona suas partes.

Contudo, nem toda ação repetida por todos os indivíduos pode ser chamada de fato social. Comer e respirar são ações que todos os seres humanos realizam e que necessitam realizar para não morrer, mas pertencem ao campo da biologia. Já o direito, a religião, a família, o sistema financeiro, a moda, a divisão do trabalho e muitos outros são fatos sociais, pois são gerais (valem para todos), exercem coerção (causam pressão direta ou indiretamente sobre os indivíduos) e são exteriores (existem fora dos indivíduos).

Para Durkheim, também existiram fatos sociais normais e fatos sociais patológicos. O que os diferencia? A princípio, os fatos sociais normais seriam os que mantêm regularidade na sociedade, enquanto os patológicos seriam os eventuais; em segundo lugar, os fatos sociais normais são sinônimos de uma sociedade saudável, coesa, enquanto os fatos patológicos caracterizariam uma sociedade doente, desestabilizada. Exemplos: uma taxa de criminalidade dentro da expectativa, na visão de Durkheim, é um fato social normal, pois o crime ocorre em todas as sociedades humanas e jamais deixará de existir. Já uma onda de criminalidade fora do comum e difícil de ser detida caracterizaria um fato social patológico. Não é preciso muito esforço para supor como essa diferenciação foi alvo de críticas pelos seus contemporâneos, já que ver o próprio fenômeno do crime como algo normal era incomum.

Se nos atentarmos, alguns dos termos citados acima lembram as ciências naturais: “patológico”, “saudável” etc; traços da abordagem funcionalista. Herança do pensamento de Herbert Spencer e de outros pensadores, o funcionalismo presente na obra de Durkheim busca compreender os fatos sociais através da função que estes exercem no todo, tal qual órgãos num organismo: cada órgão exerce uma função e se todos estiverem cumprindo seus papéis de forma adequada, o corpo continua funcionando bem. Caso algum não funcione direito, desenvolve-se a anomia, uma patologia que precisa ser remediada para que a ordem volte a se estabelecer. resumidamente, a sociedade é o corpo e os fatos sociais/instituições são os órgãos.

Para Durkheim, explicar os fatos sociais significa demonstrar a função que eles exercem. Todavia, esta explicação não se encontra no futuro (a utilidade que nós projetamos nas coisas), mas se encontra no passado: primeiro é preciso investigar a razão pela qual surgiu aquela prática social (sua causa eficiente), para depois determinar sua função. Esta era a inovação que Durkheim propunha em relação a Herbert Spencer: a primeira investigação (causa eficiente) deve preceder à segunda (sua utilidade social).

in “Sociologia clássica”, de Carlos Eduardo Sell, 2001, p.40.

Mas o que mantém os seres humanos unidos? Para responder a essa questão, em seu livro “Da divisão do trabalho social”, Durkheim desenvolve dois conceitos: o de solidariedade mecânica e o de solidariedade orgânica.

A solidariedade mecânica está presente nas sociedades pré-capitalistas e pré-modernas, erroneamente chamadas de sociedades primitivas, onde os principais fatores de agregação são a força da tradição, o pequeno número de integrantes no grupo, a implacável coerção para se manter o grupo unido, além de um alto nível de homogeneidade entre os indivíduos. Peguemos como exemplo uma sociedade tribal, onde todos se conhecem e desempenham papéis semelhantes, com forte senso de pertencimento ao grupo, regras rígidas e sem muita diferenciação aparente entre os sujeitos.

Onde reina a solidariedade mecânica, aparece o que Durkheim chama de consciência coletiva. Trata-se de um conjunto cultural de ideias morais e normativas compartilhado entre os indivíduos que compõem essas sociedades pré-capitalistas. Tal conjunto tem como função manter o grupo unido, constrangendo os comportamentos individuais que ameacem a integridade do coletivo. Essa consciência coletiva é adquirida pelos indivíduos através dos processos de socialização, como a educação. Nesses processos o indivíduo adquire hábitos, valores, comportamentos, costumes, senso moral; ou seja, é a partir desses processos que o indivíduo desenvolve sua identidade social. Não há muito espaço para o indivíduo se desvincular do grupo ao qual pertence ou exercitar particularidades.

Já na sociedade de solidariedade orgânica, capitalistas, modernas, densamente populosas e urbanas, os indivíduos estão integrados na sociedade porque cada um passa a depender do outro, mas com um certo distanciamento. Este fenômeno se deve à especialização de funções, chamado de divisão social do trabalho. Nesse sentido, as sociedades modernas são altamente diferenciadas, com cada indivíduo exercendo funções bem específicas e distintas umas das outras, num sistema altamente complexo e dinâmico, criando um nível de interdependência elevado. Nas sociedades tribais o sujeito que faz o pão é um artesão, responsável por toda a cadeia de produção até o produto final. Já nas sociedades modernas quem deseja o pão depende do padeiro, que por sua vez depende do produtor de trigo, que também depende do transportador da mercadoria, que depende do produtor de veículos automotivos etc. Cada um exerce uma função distinta para que, ao fim, como numa linha de montagem, se tenha o produto final.

Basta olharmos para todos os produtos que nos cercam, dos quais dependemos, e imaginar a enorme cadeia de produção que foi necessária para que possam estar ao nosso alcance. Ainda assim, para Durkheim, é graças a essa divisão social do trabalho que os indivíduos podem gozar de uma liberdade jamais antes vista noutras épocas, já que não precisam se ocupar em sanar todas as suas necessidades básicas, focando-se em poucos pontos e tendo maior tempo livre para outras atividades antes impossíveis.

Enfim…

Devemos reconhecer o peso da figura polêmica dentro das ciências sociais, hora vista como conservador e noutras como um moderado. Seu trabalho influenciou vários nomes na área de ciências e antropologia, como Marcel Mauss, Talcott Parsons, Lévi-Strauss, Bronisław Malinowsk, Radcliffe-Brown, além de outros contemporâneos como Anthony Giddens, Pierre Bourdieu e muitos outros.

Referências e dicas de leitura

Seguem abaixo as referências e indicações das principais obras de Durkheim traduzidas para o inglês, além das sugestões de leituras complementares.

Livros de Émile Durkheim:

  • Da divisão do trabalho social (1893)
  • As regras do método sociológico (1895)
  • O suicídio (1897)
  • As formas elementares da vida religiosa (1912)
  • A educação moral (1925, obra póstuma)
  • Lições de sociologia (1950, obra póstuma)

Leituras complementares:

  • “Sociologia clássica: Marx, Durkheim e Weber”, de Carlos Eduardo Sell, atualmente editado pela Editora Vozes.
  • “Um toque dos clássicos”, de Tânia Quintaneiro, Maria Ligia de Oliveira e Barbosa Márcia Gardênia Monteiro de Oliveira, da UFMG.

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