Freud: do mito ao homem

Resenha do livro “Sigmund Freud, na sua época e em nosso tempo”

Rodrigo Barros
Paiol
4 min readJul 29, 2018

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Ao me deparar com esse livro, fiz duas indagações mentais. A primeira foi pessoal: me perguntei o motivo de pegar uma biografia para ler, uma vez que este não é um dos gêneros que mais aprecio; a segunda foi de tom mais geral: Sigmund Freud necessitava de uma nova biografia?

A primeira pergunta não surge por uma aversão ao gênero, mas sim por uma relação superficial. Li algumas biografias, mas nunca foi um tipo literário preferido. A segunda pergunta se dá por estarmos falando de uma figura singular e polêmica que já foi inspiração para filmes, peças de teatro, teses, críticas, rixas, e, obviamente, biografias.

Uma das mais famosas, caso não seja a mais reconhecida de fato, é de autoria do historiador Peter Gay (1923–2015), intitulada “Freud, uma vida para o nosso tempo, de 1989. Portanto, pode haver aquele receio que já tivemos bastante material produzido sobre esse sujeito, e que este só se trataria de mais um trabalho de síntese repetindo o que todos já falaram antes.

Mas não é isso que vemos em “Sigmund Freud: na sua época e em nosso tempo”, da historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco. Baseando-se numa quantidade considerável de fontes (documentos e correspondências da época), Roudinesco reconstrói a história desde os antepassados do inventor da psicanálise, perpassando sua juventude, sua formação, seus casos clínicos, suas amizades, amores e ódios, até os seus últimos momentos como exilado em Londres, no prelúdio do que seria a 2° Guerra Mundial.

A autora se propõe a remover o véu dos boatos e da idolatria e nos mostrar que Freud fora, antes de tudo, um ser humano do seu tempo e do seu lugar. Um judeu sem Deus; um filho do iluminismo romântico germânico; um estudioso voraz; um teórico da sexualidade sem uma vida sexual ativa; um médico que resolveu escutar no divã o que muitos preferiam ignorar; um homem presunçoso que acreditava estar destinado a grandes descobertas e conquistas; um pensador cheio de hesitações e temores pelos pontos em que sua obra lhe pareciam frágeis, sempre crendo estar sob ataque quando, na verdade, seu trabalho era referenciado.

Tudo isso nos leva a não mais ignorar os contrastes entre aquilo que se escreve e aquilo se vive no cotidiano. Na obra de Freud encontramos um interlocutor que muitas vezes declara os limites do seu saber, que este estaria destinado a ser superado pelos novos cientistas. Também nos damos de cara com alguém disposto a perceber e ouvir o feminino, algo tão demonizado em seu tempo como sendo capaz de perverter a ordem social — nos sentidos hoje atribuídos à homossexualidade por parte de certas vertentes conservadoras.

Roudinesco nos mostra um Freud em sua intimidade e que, apesar de tudo que escreveu, mantinha uma lógica ortodoxa ao seu redor, muitas vezes intransigente, de mestre absoluto e discípulos obedientes. Sua ortodoxia também se expandia para terrenos fora do seu domínio, oferecendo teorias generalizantes que mais tarde vieram a ser criticadas dentro da própria psicanálise. E em sua vida familiar a ordem patriarcal prosseguia, mesmo que com suas particularidades; seria a psicanálise freudiana uma crítica dessa ordem do século XIX ou um reforço para se retornar a esse modelo?

De maneira muito semelhante como acontece com Marx e o marxismo, a história de Freud e da psicanálise é marcada por conflitos, intrigas e cismas. Não é por menos que Renato Mezan, em “O Tronco e os Ramos” declara que os psicanalistas não falam a mesma língua. O campo iniciado por Freud, onde ele imaginava que seria respeitado e considerado, aos olhos dos discípulos, como um pai de imensa autoridade, não tardou para se ver de cara com a rebeldia; seja a rebeldia mais explícita de Carl Gustav Jung ao romper totalmente as relações com o mentor austríaco, seja a mais implícita de Ernest Jones ao elaborar regras e valores para a psicanálise que provavelmente não seriam tolerados por herr professor.

Significativo é apreender como a Grande Guerra (nome dado para a 1° Guerra Mundial até o início da segunda) marcou Freud e sua obra de maneira a trazer um pessimismo mais incisivo sobre a espécie humana e o seu futuro, com base nas amostras de seus medos, preconceitos, ódios e fantasias. Haveria no velho Freud ainda um iluminista, mas um iluminista sombrio, por mais incoerente que pareça essa junção de palavras.

Roudinesco, num trabalho de fôlego, nos traz o homem ao invés do mito; um homem genial com todas as contradições incontornáveis a qualquer humano, sem remover o enorme peso e influência que a sua teoria desempenhou e segue desempenhando.

Acheronta movebo!

Título: Sigmund Freud, na sua época e em nosso tempo

Autora: Elisabeth Roudinesco

Editora: Zahar

N° de páginas: 528

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