Nos limites da democracia liberal

Rodrigo Barros
Paiol
Published in
4 min readOct 16, 2018

O avanço da extrema-direita num Ocidente em crise fez com que a crença na democracia representativa, aos olhos de alguns, tenha decaído. Os líderes dessa onda conservadora, xenófoba e despótica, debocham das regras do jogo e fazem uso de propaganda (ou fake news) para reunir um público fiel ao discurso chauvinista, anti-intelectual e agressivo. A classe política fisiológica divide-se entre os atordoados e os que querem aproveitar a onda para surfar, acreditando que as instituições serão capazes de impedir excessos do fenômeno da vez.

A depender do país, o autoritarismo não é um fenômeno realmente surpreendente. No Brasil ou na Turquia, onde os ciclos de democracia são menores do que a presença do autoritarismo, é um triste reencontro. Já em países como os Estados Unidos da América, com seus habitantes famosos por seu orgulho em viverem numa democracia sólida com 200 anos, a subida de Trump serviu para abalar as estruturas.

Infelizmente, a história se repete. “Primeiro como tragédia, depois como farsa”. Diante de uma crise cíclica do sistema capitalista, nos deparamos com o ruir dos consensos, com a instabilidade, com o desemprego e com as demais convulsões sociais. Os custos para tamanho caos e irracionalidade econômica é tão alto que os afetos dos sujeitos são constantemente abalados. As respostas dos especialistas são complexas, não parecem dar solidez alguma. O questionamento “como viemos parar nessa situação?” se mostra mais presente e não desejam palavras difíceis. Queremos algo pra hoje, rápido, imediato.

Temos instalado o palco para a demagogia e para as fantasias se apresentarem. Juntas tentarão colocar “ordem” através do ato de esconder as brechas da realidade.

Surgem os políticos que demandam para si uma mítica inalcançável, armados com um leque de medidas extremas e simples, frases feitas, audíveis para que qualquer mortal compreenda e fáceis de serem replicadas. A tática é: a culpa não é nossa. A culpa é do outro invasor que corrompeu nosso corpo. O único jeito de resgatar os bons tempos (tempos esses sempre distantes, sempre dotados de uma perfeição perdida) é através da eliminação desses outros. É a consolidação da ultrapolítica: a divisão do campo político entre o “nós” e o “eles”.

Nada de paradoxos econômicos, crises estruturais, conflitos de interesses das classes, contradições da “ordem” em que vivemos. Não, isso não é interessante, requer planos complexos e dolorosos; ao invés disso, a raiz dos problemas seria de origem moral e nada mais. Com a moralização se consertará tudo, mesmo que para isso tenhamos que sujar as mãos.

A culpa é dos judeus; dos imigrantes; dos socialistas; dos homossexuais; dos negros; dos pobres. A culpa é do diferente, do que não compartilha comigo meus valores, minha cor de pele, minha orientação sexual, minhas crenças. Tudo estava ótimo até que os outros chegaram. Isso nos ensina que o ódio instrumental jamais deve ser subestimado.

Verdade que esse tipo de processo já fora mais traumático. Se na maior parte do século XX o uso de golpes de Estado e de processos abertamente violentos foram os implementados para colocar em vigor essas agendas da extrema-direita, no seculo XXI as táticas se mostram mais discretas (embora não menos violentas ou desprovidas de impacto). Procura-se o Estado de Exceção. Dobra-se mais lentamente a lei e, com tecnologia, dados e estratégia, age-se mais rápido do que o sistema está habituado a funcionar. Tem-se o aval popular para a supressão de liberdades e para a instauração de políticas anti-povo. Fujimore e Erdogan fizeram escola.

Em 1992, findada a Guerra Fria, o filósofo Francis Fukuyama publicou o livro “O Fim da História e o Último Homem”. Resumidamente, o autor defendia que, findado o conflito entre ocidente capitalista e o bloco soviético, não haveriam mais conflitos que ameaçassem a hegemonia da democracia liberal representativa e do sistema capitalista. A humanidade teria chegado ao seu ápice e o trabalho seria, através dos consensos, fazer ajustes e garantir a estabilidade.

Agora temos amostras atuais do que alguns pensadores já afirmaram antes: capitalismo e democracia só caminham juntos quando convém. Para garantir acumulação e permitir que o ciclo irracional prossiga, é completamente possível chutar a democracia liberal para longe.

Nosso sistema político se mostra incapaz de lidar com as contradições climáticas, com o avanço da automatização e com as desigualdades. Nossas classes dominantes se recusam a colocar essas questões na mesa para não perderem os privilégios. Motivos para a insatisfação não faltam, mas, ao invés de mais democracia, de possibilitar novos meios de organização social, usaremos esse momento de tempestade para fazer uma “revolução conservadora” e assegurar a hierarquia vigente. Afinal, alguma coisa precisa mudar para que tudo possa permanecer como está. Mérito da direita que soube articular esse cenário; falha da esquerda que deixou a oportunidade escapar.

A ordem do dia é: se o divórcio do capital com a democracia representativa liberal for necessário, que assim seja. Vemos que a verdadeira utopia reside na cabeça dos que acreditam que podemos manter tudo como está, indefinidamente.

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