O nunca mais que nunca chega

Rodrigo Barros
Paiol
Published in
3 min readAug 31, 2018

Quando há vontade o suficiente, cultivamos meios para nos recordar de não cometer os mesmos atos sem retorno. A pequena mão que toca a chama da vela é perdoável e o preço é banal, enxugam-se as lágrimas e o que era ferida já não é mais. Mas o mesmo não é válido quando o desavisado tenta jogar-se numa fogueira.

Povos inteiros se uniram para evitar que o que era apenas brasa voltasse a consumir toda a morada; mesmo aquilo que podia parecer atraente ao primeiro olhar.

Construímos monumentos em homenagens aos mortos pelos nossos excessos; criamos leis que proíbem o julgamento e o tratamento diferenciado de pessoas pelas suas características físicas, escolhas, crenças ou orientações; punimos aqueles que removeram dos outros o que os tornava humanos. Estampamos nas paredes, nos livros, nos olhos e nas bocas: Nunca mais!

Bom, ao menos foi o que alguns povos fizeram. Alguns não fizeram. O meu não o fez.

Meu país tem uma história marcada por violência e repressão, mesmo que se venda como afável ou cordial para quem vem de fora. Não seria exagero afirmar que os momentos de exceção são na verdade a norma, restando pouco espaço para os períodos de liberdade.

Nossa República foi fundada por um golpe e presidida por um presidente que não queria ser presidente. De lá para cá vivenciamos chefes de Estado que não quiseram sair e outros que, para entrar, não hesitaram em fazer uso das armas. O último período sombrio durou 21 anos, se estendendo de 1964 até 1985. Ao passo que me é privilégio ter nascido e crescido num desses intervalos de razoável democracia, os ecos desse passado não deixam de reverberar ao meu redor.

Eles se multiplicam nas instituições não renovadas, na história ignorada, no revisionismo sem freios, na truculência propagada e no esquecimento e ocultamento dos cadáveres. Esses mesmos ecos alimentam as fantasias autoritárias, o chauvinismo, a busca por bodes expiatórios, o clamor pelos cassetetes, o júbilo pela força, os chamados pelos mestres.

Herança maldita. Ao nos deparar com contradições e crises, não é raro colocarmos as mãos na altura dos ouvidos, fechando-os para qualquer demanda por ação e responsabilidade concreta. Optamos por ressuscitar o senso infantil na procura de um grande pai que, ao ver a criança em apuros, imediatamente a salvará e tudo retornará ao que era, na mais perfeita ordem. Estamos dispostos a pagar o preço de tamanha medida não somente porque a fantasia é sedutora, mas também porque já pagamos o preço antes.

Escolhemos não ouvir os que foram silenciados, os que precisaram se exilar, os que foram presos e torturados. Preferimos não dar sequer paradeiro aos corpos. Escolhemos tolerar o intolerável. Escolhemos ter ao nosso redor os autores dos absurdos. Permitimos que tivessem a liberdade de expressar que o que fizeram foi necessário, somente com quem merecia ou mesmo que nada de mais aconteceu. Fechamos os olhos.

Não é surpresa que mais uma vez a pequeneza se aproxime com o apelo de sempre, como se fosse caminho viável, trazendo consigo as armas, a vontade de violência, de silenciar quem ousar questionar, de tratar como descartável aquele que for conveniente, de cultivar mais uma vez que tudo pode ser resolvido com uma boa dose de gritos (e algumas valas).

E mesmo não sendo surpresa, só me resta lamentar indignado que esse horizonte ainda se mostre como caminho possível nas cabeças de tantas pessoas ao meu entorno.

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