O pensamento sociológico de Karl Marx - Parte I

Rodrigo Barros
Paiol
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12 min readJan 12, 2017

Da mesma forma que escrevi sobre o sociólogo francês Émile Durkheim, escrevo sobre o filósofo e economista alemão Karl Marx, ou seja, sem propor uma leitura original, dogmática ou profunda. Opto por tentar apresentar de forma acessível um pouco da vida e da obra deste importante intelectual. Tido como um dos pais do pensamento sociológico, Marx marcou presença e continua marcando em inúmeras áreas do conhecimento, sendo impossível ignorá-lo.

No entanto, o pensamento de Marx é polêmico e provoca discordâncias mesmo entre as várias correntes marxistas, o que acabou por disseminar algumas interpretações em detrimento de outras. Isso também dificulta a tarefa de separar o que de fato é oriundo de Marx do que é oriundo dos marxistas que o interpretaram, me obrigando a alertar o o leitor do seguinte: esse texto deve ser lido como um complemento, mas nunca como um substituto ao que escreveu o próprio Marx. Se possível, leia o original.

Vida

Karl Heinrich Marx nasceu no dia 5 de maio de 1818, em Trier, cidade localizada numa região que nesta época pertencia ao Reino da Prússia e atualmente é parte da Alemanha. Filho de judeus, em 1835 foi estudar direito na Universidade de Bonn, transferindo-se mais tarde para Berlim, onde estudou filosofia e criou laços com grupos políticos de esquerda, como os neo-hegelianos. Obteve seu doutorado em 1841, mas foi impedido de seguir carreira como professor universitário por causa da perseguição do governo.

Como alternativa, em 1842, Marx conseguiu trabalho como editor no jornal “Gazeta Renana”, na cidade de Colônia. Contudo, o jornal não tardou a ser fechado por causa do seu viés radical contra vários problemas da sociedade alemã, o que não agradou as autoridades. Casou-se com Jenny von Westphalen e mudaram-se para Paris em 1843 (o casal viria a gerar seis filhos). Em Paris, Marx teve contato com os socialistas franceses e foi um dos fundadores da revista “Anais Franco-alemães”. Também viria a conhecer o alemão Friedrich Engels, que veio a se tornar um grande amigo e co-autor de várias de suas obras, como “A sagrada família” e “A ideologia alemã”.

Também perseguido em Paris por envolvimento em movimentos políticos, Marx muda-se para Bruxelas (Bélgica) em 1845, onde ajuda a fundar a Liga dos Comunistas e escreve, em 1848, o famoso “Manifesto do Partido Comunista”. Neste mesmo ano acompanha as revoluções que estouraram na Europa e retorna para a sua terra natal, mas o fracasso da revolução alemã força-o para o novo exílio e em 1850 muda-se para Londres, Inglaterra.

Na capital inglesa, Marx decide paralisar suas atividades políticas para poder se dedicar a um grande projeto acadêmica na Biblioteca Pública: estudar a fundo o modo de produção capitalista. O resultado dessa extensa pesquisa aparece em 1867, com a publicação de “O Capital”, considerada por muitos dos marxistas a sua maior obra. Mas já em 1864 a atividade política retorna a sua vivência com a fundação da I Internacional, que seria uma organização responsável por articular o movimento comunista em nível internacional e que veio a se dissolver em 1872, devido a divergências com os anarquistas, como Mikhail Bakunin. Marx veio a falecer em Londres, no dia 14 de março 1883, um ano após a morte da esposa e com a a saúde já debilitada, aos 64 anos.

Contexto e influências

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

Marx viveu durante o século XIX e viu a Revolução Industrial mudar o mundo que o cercava. Os ideais do iluminismo e da Revolução Francesa também ecoavam na realidade de sua época e aparecem em sua obra, valorizando a crença no poder da ciência e da razão humana rumo ao progresso.

Ele também desenvolveu um intenso diálogo com as principais correntes de pensamento da sua época, herdando uma grande bagagem teórica. Destaco três dessas correntes que tanto o influenciaram como foram influenciadas por ele:

1- A filosofia alemã: Marx, como já dito anteriormente, era filósofo de formação e estudou os grandes nomes da filosofia germânica, como Kant e Hegel. Também foi integrante dos neo-hegelianos, grupo do qual faziam parte figuras como Moses Hess, Max Stiner, Bruno Bauer, e Ludwig Feuerbach. Embora fossem estudiosos da obra de Hegel e utilizassem seu método dialético como forma de apreender o mundo, esses filósofos desenvolveram posturas críticas para com o pensamento do mestre.

2- Socialismo utópico francês: foi na França que Marx teve contato com os trabalhos dos socialistas franceses, como Charles Fourier, Pierre-Joseph Proudhon e Saint-Simon, aos quais chamou de socialistas utópicos. Marx acreditava que esses faziam boas críticas ao sistema capitalista, mas falhavam em não estudar como esse sistema funciona, bem como pecavam por não reconhecer na classe trabalhadora o potencial de transformação da sociedade. Por isso, Marx pretendia desenvolver um socialismo científico para lidar com as lacunas do socialismo utópico.

3- Economia política: Foi na Inglaterra que Marx se aprofundou nos estudos de economia, buscando entender como o capitalismo funciona. Para realizar esse objetivo, ele se baseou em importantes economistas ingleses como David Ricardo e Adam Smith.

Teoria sociológica

Marx procurou compreender a sociedade moderna focado em sua dimensão econômica, e embora não fosse sociólogo, o seu trabalho foi incorporado, debatido e ampliado por grande parte da Ciências Sociais desde o seu desenvolvimento até os dias de hoje, tornado-se um marco incontornável. É nesse sentido que podemos falar de uma teoria social em Marx.

Essa teoria social começa a ganhar forma na elaboração do seu pensamento filosófico, que teve início num acerto de contas com toda a filosofia de Hegel e com os neo-hegelianos de esquerda. Me ocuparei, obviamente, primeiro de Hegel para depois falar dos neo-hegelianos e então retornar a Marx.

Materialismo e Dialética

O primeiro ponto a destacar de Hegel é a sua redescoberta da dialética como método para se compreender a realidade e a história da humanidade, estabelecendo assim o idealismo dialético. Hegel, tal qual Heráclito, não acreditava que o mundo era estático, que as coisas eram imutáveis e que os seres carregavam consigo uma essência fixa. Pelo contrário, o mundo seria dinâmico, conflituoso, contraditório, em constante transformação, num eterno devir, pois todas as coisas carregariam consigo a sua própria negação.

Para Hegel, a ideia de que todos os seres são contraditórios é um princípio que governa toda a realidade. É o fato que todo ser é contraditório que explica a causa do movimento ou devir contínuo (SELL, 2009, p. 42)

Heráclito percebeu esse movimento no mundo natural e Hegel percebeu que o mesmo movimento se dava no mundo social. Para captar esses processos, Hegel desenvolveu o método dialético, que consiste em considerar que todos os seres e entes passam por três momentos primordiais, que são: tese, antítese e síntese. Tudo que é afirmado (tese) choca-se com com o seu oposto, sua negação(antítese), e deste embate surge uma coisa nova (síntese). A síntese se torna uma nova tese e o ciclo dialético continua indefinidamente.

Para Hegel, um idealista por excelência, são as ideias (consciência humana), que constituem o fator primário da realidade e da história, e a matéria seria reflexo dessas ideias. O mundo material não possui significado algum, e sim nós, com as nossas consciências, que damos sentido a tudo que nos cerca. Portanto a matéria surge através da alienação do pensamento, que sai de si e se transforma em matéria, negando a consciência. A superação dessa contradição levaria ao que Hegel chamou de “Espírito Absoluto”, que superaria a dicotomia entre pensamento e matéria. Em suma. para simplificar algo já bastante abstrato:

1 - TESE: A realidade é pensamento
2 - ANTÍTESE: A realidade é matéria
3 - SÍNTESE: A realidade é pensamento e matéria

Podemos dizer que, para Hegel, enquanto filósofo idealista, a história consiste numa retomada da consciência que fora colocada de lado, mas que com o auxílio da razão retornará para sua morada. Assim sendo, temos uma guinada rumo ao progresso, numa evolução da história humana que caminha em direção a esse “Espírito Absoluto”.

Depois da morte de Hegel, os neo-hegelianos iriam se basear em suas teorias para elaborar críticas ao seu pensamento. Um dos integrantes desse grupo era Ludwig Feuerbach, filósofo radical que sustentava que toda a alienação do homem provém dos fenômenos religiosos. Hegel teria errado ao apostar no idealismo como base e assim reforçava crenças religiosas, que afirmavam ser Deus o criador do homem, quando na verdade o homem é que teria criado Deus. Para Feuerbach, o homem se aliena da sua consciência e a submete a forças divinas que ele mesmo criou, virando o mundo de cabeça pra baixo. Não seria o idealismo a recuperar a consciência do homem, mas sim uma base materialista, fundamentada no mundo sensível, que proporcionaria uma visão consistente e uma crítica da religião destruidora. Só assim o homem abdicaria da alienação a qual se submete.

É neste cenário que Marx e Engels entram, capturando elementos do pensamento de Hegel (idealismo hegeliano) e de Feuerbach (materialismo) e desenvolvendo o chamado materialismo dialético na obra “A ideologia alemã” (1846), pretendendo superar tanto as teorias de Hegel como as dos neo-hegelianos. Marx não discordava do método dialético de Hegel, de que tudo era movimento e contradição, mas sim do seu fundamento metodológico idealista: Não é consciência que determina a matéria, mas a matéria que determina a consciência. Como assim? Marx sintetiza em alguns pressupostos que destaco aqui:

(…) o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais.

O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades — e essa produção de novas necessidades constitui o primeiro ato histórico.

A terceira condição que já de início intervém no desenvolvimento histórico é que os homens, que renovam diariamente sua própria vida, começam a criar outros homens, a procriar — a relação entre homem e mulher, entre pais e filhos, a família.

Segue-se daí que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de cooperação ou a uma determinada fase social (…). Somente agora, depois de já termos examinado quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias, descobrimos que o homem tem também “consciência”.

(MARX & ENGELS, 2007, p. 33–34)

Aqui Marx e Engels deixam evidente que, para eles, a consciência surge da necessidade e da existência de intercâmbio entre os seres humanos, tratando-se de produto do meio social. Marx inverte o pensamento de Hegel, alegando que não será possível compreender a história partindo do mundo das ideias, e sim dos próprios seres humanos, das suas ações e suas condições materiais. São os seres humanos que, procurando transformar a natureza e em relação e atrito com outros seres humanos, criam contradições e transformam a realidade e a sociedade, mantendo assim o fluxo dialético.

Se nos atentarmos, podemos ver que Marx captou elementos do materialismo de Feuerbach e os aplicou ao idealismo hegeliano para criar o seu materialismo dialético. Marx afirmava que o materialismo de Feuerbach não era suficiente, pois concentrava-se no fenômeno religioso como raiz da alienação. Fracassava em perceber que, na verdade, as relações materiais que os seres humanos estabelecem e o modo como produzem seus meios de vida são as verdadeiras causas da alienação e somente através da transformação destas é que se consegue libertar a humanidade da alienação pelo sistema. Combater a religião seria promover uma “guerra de frases”, algo completamente ineficaz, já que sem mudanças na base material e nas relações de produção, a realidade social não muda e a alienação persiste.

Marx defende que deve-se unir teoria e prática, numa práxis que vá além da mera abstração ou da ação política sem fundamento teórico, promovendo mudanças reais na base da sociedade. Teoria e ação política isoladas são incapazes, mas juntas tornam-se a chave para uma ação concreta. É por isso que o pensamento de Karl Marx está orientado para uma posição política revolucionária, que não se baste em conhecer como o mundo é, mas que procure também torná-lo algo diverso do que é. Não é atoa que temos a 11° tese sobre Feuerbach, bastante popularizada, onde Marx diz: “os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é transformá-lo”. Veremos mais sobre esses pontos na segunda parte desse texto.

Materialismo histórico: Infraestrutura, superestrutura e classes sociais

Tendo erguido as bases filosóficas do materialismo dialético, Marx o aplicou para estudar a sociedade e a história humana. A essa aplicação do materialismo dialético damos o nome de materialismo histórico.

Marx via a sociedade como um todo, como um sistema onde as instituições, os elementos econômicos, as ideias, as representações, a política, as relações sociais etc, estão interligados. Contudo, como vimos anteriormente, para Marx são os seres humanos, interagindo para satisfazer suas necessidades materiais, que acabam por condicionar todos os outros elementos desse sistema.

Para ele, o estudo da sociedade tem seu fundamento na economia (vida material do homem), que é o elemento que condiciona o desenvolvimento da vida social (SELL, 2009, p.50).

Na obra “Contribuição a crítica da economia política” (1859), Marx atribui a esse elemento condicionante, a base material da sociedade, o nome de estrutura, mas que na sociologia brasileira ficou mais conhecida por infraestrutura, que é composta pelas forças produtivas e pelas relações de produção. Já os outros elementos desse sistema, como o Estado, o direito, a política, a ideologia e demais formas sociais determinadas de consciência, responsáveis por justificar e reproduzir a base material, recebem o nome de superestrutura. Podemos apresentar essa concepção da sociedade no seguinte esquema:

As forças produtivas são o conjunto formado pelos meios de produção (matéria-prima, instrumentos, maquinário, fábricas, armazéns, transporte etc) e a força de trabalho (trabalhadores), ou seja, tudo aquilo que é utilizado pelos seres humanos no processo de produção. No entanto, esse processo não se dá de forma isolada, pois os indivíduos trabalham em conjunto, coletivamente, e desenvolvem relações que Marx chama de relações de produção. Essas relações correspondem à divisão do trabalho feita na produção, e elas mudam necessariamente com a mudança e o aumento das forças de produtivas. Unidas, forças produtivas e relações de produção, formam um modo de produção, a infraestrutura do sistema, que na época de Marx (e na nossa) trata-se do modo de produção capitalista.

Enquanto analisava as relações de produção, Marx concluiu que estas acabam por dividir a sociedade em classes sociais (embora ele não tenha sido o primeiro a afirmar isso). As classes sociais aparecem quando um grupo de indivíduos assume o controle dos meios de produção e se torna proprietário dos mesmos, segmentando a sociedade em dois grupos principais: os proprietários dos meios de produção e os não proprietários, ou as classes dominantes e as classes dominadas. É o surgimento da propriedade privada, segundo Marx, que origina as classes e o processo de exploração sobre o outro.

Para garantir o controle dos meios de produção e, consequentemente, o controle da demais classes, as classes dominantes precisam de instrumentos apropriados que estão localizados na superestrutura do sistema. Marx vê no Estado uma dessas ferramentas criadas pelas classes dominantes para suprir essa necessidade de dominar as outras classes, já que as leis (direito) e decisões do Estado (política) beneficiam diretamente os proprietários, em detrimento dos não proprietários. Em último recurso, o Estado ainda possui o monopólio da força (polícia, forças armadas) para assegurar os interesses dos proprietários caso esses corram risco.

A ideologia, ou a força das ideias, compõe o segundo instrumento para assegurar a dominação. Marx defende que as ideias mais difundidas numa sociedade são as ideias das classes dominantes, pois são elas que conseguem, através de todo o aparato que possuem, transmitir suas “visões de mundo”, seus princípios e seus valores para as outras classes. Sintetizando, a ideologia compõe um agrupamento de representações da realidade que consolidam e reproduzem o poder dos proprietários.

Na segunda parte deste texto veremos os seguintes pontos: como Marx vê a evolução da história humana a partir do modos de produção do passado, até o modo de produção capitalista; as teses da exploração (mais-valor/mais-valia) e alienação (fetichismo da mercadoria); a teoria da crise do sistema capitalista; e por último as suas teorias políticas sobre revolução e comunismo.

Referências e sugestões de leitura:

  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
  • SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Marx, Durkheim e Weber. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009.

Obras de Marx e Engels publicadas no Brasil:

  • A guerra civil na França
  • A ideologia alemã
  • A sagrada família
  • A situação da classe trabalhadora na Inglaterra
  • As lutas de classes na França de 1848 a 1850
  • Anti-Dühring
  • Contribuição a crítica da economia política
  • Crítica da filosofia do direito de Hegel
  • Crítica ao programa de Gotha
  • Grundrisse
  • Luta de classes na Alemanha
  • Luta de classes na Rússia
  • Manifesto Comunista
  • Manuscritos econômico-filosóficos
  • O 18 brumário de Luís Bonaparte
  • O Capital
  • O socialismo jurídico
  • Sobre a questão da moradia
  • Sobre a questão judaica
  • Sobre o suicídio

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