Uma distância segura: a ideologia da domesticação

Rodrigo Barros
Paiol
Published in
4 min readApr 28, 2017
“Nós somos responsáveis pelos nossos sonhos”

O brasileiro “de bem” procura manter as coisas exatamente como estão, para que em seu cotidiano possa resmungar que as coisas simplesmente não mudam no país em que vive. Sua ideologia é nem lá e nem cá, procurando manter uma distância perfeita para que sua posição de conforto não seja ameaçada.

Tal como numa tela de televisão: Se ficarmos muito longe não conseguimos identificar o que se forma em sua superfície, e o mesmo acontece se ficarmos próximos demais. Não queremos esse desconforto pela proximidade ou pela distância com as coisas. Queremos uma imagem cristalina, nítida e total.

Clamamos por essa totalidade porque as falhas nos mostram os antagonismos, as imperfeições, os conflitos, as contradições, as brechas, as lacunas do real. A ideologia nos fornece essa tela pela qual podemos olhar e esconder qualquer coisa que não se encaixe. E aquilo que não se encaixar, que aparentar ameaçá-la, só pode se tratar de um corpo estranho que coloca toda a narrativa construída em perigo, como um parasita que invade um organismo.

É a imagem do outro que nos mostra essas falhas; o outro que é diferente de nós e que, exatamente por sua natureza de coisa (indizível), deve ser eliminado para garantir a estabilidade da imagem. O outro, em sua presença e ação, ameaça nos levar para perto ou para longe da tela, bagunçando nossas coordenadas daquilo que vemos como real ou possível.

Mas não queremos isso. Quem quer saber que aquilo que víamos como totalidade nada mais era que uma grande ilusão arbitrária para denominar o que não existe? Ninguém! Porque é doloroso e custoso, nos forçando a voltar para o pensamento e reorganizar novamente todo aquele quadro que pintamos (e que voltaremos a desmanchar para pintar outro num infinito exercício de reconstrução).

Não. Preferimos defender a ordem da ideologia dominante com todas as forças e encontramos figuras exatas para carregar o fardo de toda essa situação. Quem ameaça essa ordem é o vagabundo. É o estrangeiro invasor. É o comunistinha. É o idealista que pensa muito. É o preto do qual eu mudo de calçada. É a mulher que não se colocou no seu lugar (a puta). É o trabalhador que deveria estar trabalhando, mas resolveu fazer baderna. É da baderna que não pode existir, porque o cidadão de bem protesta no domingo para não incomodar ninguém.

Da boca de alguém sempre surge a frase: “Tudo estava bem até essas pessoas aparecerem”. A harmonia é sempre coisa do que já passou e os nossos valores são desprovidos de crença interna. Os reproduzimos de forma cínica para poder aguentar nossas vidas, para nos finais de semana e nas férias procurarmos qualquer maneira de escapar.

O sonho do impossível também não nos cabe. Só é permitido em paraísos distantes onde as coisas são diferentes, onde funcionam, mas que no Brasil simplesmente não o são porque não podem ser. Nosso “viralatismo” não autoriza.

Lutas por menor desigualdade ou pela garantia de direitos, quando deflagradas no exterior, são demonstrações de democracia e força popular; já aqui são sinônimos de vandalismo proveniente de gente que não quer nada com a vida. Seriam todos integrantes de um grande complô que conspira contra nossa pátria ou de meros interesseiros que querem tocar fogo em alguma coisa. Nossos grevistas, por exemplo, são vistos como aqueles que se excedem e prejudicam os demais, quando o verdadeiro excesso se encontra no conforto dos gabinetes de Brasília, brincando com o futuro da vida de milhões de pessoas.

É curioso observar esse extremo no posicionamento: aquilo que acontece depois do atlântico não me ameaça nem um pouco, então eu posso apoiar pela distância e permanecer na minha vida de lamento do sonho que não chega. Já o que acontece bem aqui me obriga a pensar no impossível. Quando muito, falamos que o ideal seria algo “organizado e pacífico”, o que no fundo significa uma ação desprovida de sentido, vazia, que nada ameaça. É o mesmo que tomar uma cerveja sem álcool.

Assemelham-se, como bem diz o filósofo Slavoj Žižek, a alguns intelectuais da esquerda do passado que apreciavam a revolução que acontecia em algum país longínquo, mas que não a desejavam em seu solo pois isso ameaçaria suas carreiras de críticos do sistema em que viviam. Não sabemos o que realmente desejamos porque o que desejamos se expressa em nossas práticas, e não naquilo que falamos sobre nós mesmos.

Enquanto permanecemos nesse vai e vem de inação, lembremos que as mulheres não conseguiram votar por pedirem “por favor” ao homens; que os trabalhadores não conquistaram seus poucos direitos por boa vontade das elites empresariais; que a democracia liberal não se concretizou com passeatas no final de semana próximas aos quintais dos monarcas; que regimes inflexíveis não largam o osso por boa vontade.

É o conflito que gera movimento.

É do desmanchar desse mundo que nasce um novo.

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