Disco gravado pela Putumayo World Music — 2002

Rio de Janeiro: Do encanto da Bossa ao Samba na canção

Gabrielle Cruz
Rio Paisagem Sonora
3 min readNov 30, 2018

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Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça, ou doente do pé — assim canta Dorival Caymmi quase que numa degustação do ritmo que colocou o Brasil no menu musical mundo afora. E o que temos no cardápio? De João Gilberto, Tom e Vinícius à Wilson das Neves, de Toquinho à Donga, de Candeia à Elis. E por isso, só me resta um desejo: bom apetite.

Para uma visão ampla desse panorama, é necessário expor, de antemão, o quadro da Bossa Nova — movimento que se ergueu no mar do Rio de Janeiro na segunda metade dos anos 50. A partir de João Gilberto, uma geração de imortais entra em cena com uma música leve, ensolarada e carioca, que nunca fez grande sucesso popular, mas que modernizou a trilha sonora brasileira, abrindo alas para a expansão que vem a seguir.

Uma revolução apoteótica marca a década de 70 — social, cultural, política e economicamente falando. Com a industrialização do Brasil, cabe à geração “paz e amor” negar comportamentos da cultura dominante. O surgimento da Bossa Nova e a consolidação da MPB (Música Popular Brasileira) se firmam como a contracultura do período.

Por do sol na praia de Ipanema, quintal da Bossa Nova | Créditos: Gabrielle Cruz

A censura do Estado toma forma de cale-se, como bem disse Chico. A calada da noite aprisiona ícones da Bossa e vitimiza meios de comunicação e manifestações artísticas. Ainda assim, o silêncio da cidade já aponta a direção do samba rumo à cultura popular. Apesar do cálice hostil de vinho tinto de sangue, amanhã há de ser outro dia!

Mas, ao contrário do que canta Nelson Sargento, a árvore do samba não agonizou. Embora haja restrição à criatividade, mudança de estrutura e imposição de outra cultura, as raízes se firmam, com enorme participação de Donga e a Velha Guarda. Os lendários Cartola e Adoniran sustentam o corpo e abrem o leque para os ramos; do samba poesia brota o samba de raiz, o partido alto, o maxixe, o samba-rock, o samba exaltação, o samba enredo, o samba de morro, o samba de roda, o samba-canção. Tristeza se ausenta, fez-se a alegria!

Para Tom Jobim “a felicidade é como uma pluma que o vento vai levando” e, de fato, o vento levou. As plumas e a moça do corpo dourado do sol de Ipanema viram folia e paetê. Embora o cenário não seja favorável aos mais tradicionalistas, o período acaba desenhando o modelo de cultura que se aproxima ao que conhecemos hoje: escolas de samba com endosso de festa popular e a transformação em ópera de rua — uma realidade que vence a resistência de Candeia, Nei Lopes, Wilson Moreira e outros sambistas. Vou festejar!

O lado bom dessa história é que a gente nem sempre paga com traição a quem nos deu a mão. No jogo do amor proibido, esses mesmos resistentes criam a agremiação Quilombo, numa luta para preservar as tradições. Assim, o samba-enredo, de pouquinho em pouquinho, se adapta aos novos tempos e ganha forma. A Bossa Nova marcou, mas chega de saudade! Foi um rio que passou em minha vida.

Ouça-me bem, amor, preste atenção: chegou o disco. Nelson Cavaquinho e Cartola se consagram no novo ambiente. Enquanto isso, a geração pós-bossa nova — Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil — sobrevive à beira dos festivais para criar obras definitivas, incluindo sambas.

Martinho da Vila torna-se o primeiro intérprete, para espanto de si mesmo ao ser transformado em cantor e ser o primeiro, em muitos anos, a fazer sucesso com o samba. O canto de Clara Nunes sai do bolero e entra em cena com voz e carisma para ser uma espécie de rainha, trono que com ela disputa Beth Carvalho, outra egressa dos festivais. Pouco a pouco, outros sambistas de escola vão ganhar lugar no disco, no rádio e até na TV.

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Gabrielle Cruz
Rio Paisagem Sonora

Jornalista, atua como PR no Multishow e ama falar sobre música.