FALE não se cale
Palavra Ocupada
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3 min readNov 6, 2016

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2 de Novembro de 2016

Belo Horizonte

Para meu amigo e leitor, Guilherme.

Guilherme, senti necessidade de te escrever a respeito da Ocupação na FALE. Por uma perspectiva intimista e subjetiva das minhas impressões na vivência de um lugar que está em um regime de ocupação. A Letras mudou; por dentro e por fora sabemos que estamos em um espaço-tempo diferente do de semana passada. Cartazes e jornais tampam os vidros que davam visão para o interior do prédio. Todas as entradas são vigiadas por alunos. Ao chegar no prédio somos recebidos por rostos conhecidos, de amigos queridos e colegas com quem talvez nunca tínhamos trocado palavra, e fazemos um credenciamento para entrar. As pessoas que se propõem a ajudar são encaminhadas a comissões específicas: alimentação, limpeza, comunicação, articulação e segurança. Eu pedi para ficar na alimentação. Apesar do trabalho incessante de preparar comida, lavar pratos e panelas, estocar alimentos e lavar a cozinha, esta é uma comissão relativamente tranquila e feliz (pois estamos quase sempre comendo!). Amigos que estão nas rondas têm seu tempo reduzido de sono e estão quase sempre sob o estresse de zelar pela segurança de um prédio inteiro. Pensei em escrever esta carta na FALE, mas o número de tarefas me impediu o tempo ocioso.

Guilherme, esses dias de ocupação me revelaram o tipo de comunidade em que eu gostaria de viver. Se hoje estamos unidos contra a PEC e a MP do Ensino Médio, acredito que no futuro a consciência humana esteja aberta para a comunidade pela simples vontade de ajudar e ser útil. Como eu escrevi na última carta, minha ânsia por momentos de contato humano foi, pelo que vejo no trabalho e convívio com as dezenas de jovens, atendida. É bonito o que vejo acontecendo nas diversas ocupações da UFMG. Ontem foi o primeiro dia de ocupação da FAFICH e, por eles ainda não estarem totalmente organizados, pediram para almoçarem conosco. Eis a comunhão. Este é o tipo de comunidade em que gostaria de viver. “Não tem alimento? Eu tenho e posso fazer um grande almoço para mim e para você”.

A importância em “servir” e “ser útil” é bastante destacada no cristianismo — ser útil ao outro. Não consigo separar a minha identidade de cristão e o meu papel de cidadão em uma sociedade laica. Estudando um pouco do budismo, aprendi, também, que nenhum bodisatva (ser iluminado) se desprende do povo para viver sozinho em uma montanha, ele/ela luta para que todos aqueles que ainda não atingiram a iluminação a atinjam. Fazer parte de uma ocupação me coloca nesse objetivo maior, para além do meu euzinho; me faz pensar nas pessoas da ronda que passam fome durante as vigílias noturnas, me faz pensar nas diversas ocupações que não estão estruturadas ainda e precisam de comida, me faz pensar nas consequências que a educação e a saúde podem sofrer caso a PEC seja aprovada, me faz pensar na minha geração e nas inúmeras seguintes que serão afetadas.

Guilherme, não sei se você me entende, ou se me explico bem, mas mesmo que nada contra o que lutamos caia, já considero esta experiência excepcional e importantíssima para todos que estão participando. Na cozinha comecei a estreitar laços com pessoas de quem eu mantinha certa distância nas aulas; unidos pelo dever de alimentar uma ocupação inteira, fomos quebrando o gelo e desenvolvendo comunicação e confiança. É isto o que penso da frase “unidos pelo amor e pela luta”: amor (a comunhão; o regozijo pela felicidade do próximo e de todos; a oportunidade do contato humano) e luta (a não passividade; a crença em um ideal; a dignidade humana sem cortes ou tetos de investimentos; a alegria em movimentar-se).

Por enquanto é isso, meu amigo. Nos deseje força para os tempo difíceis que certamente virão do externo.

Grande abraço,

Tio da cozinha.

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