Nem por cima do meu cadáver

Por Jardel Silva Leitão

FALE não se cale
Palavra Ocupada
6 min readJan 12, 2017

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Capítulo I — Primavera Estudantil

A Faculdade de Letras é apática? Ocupa tudo!

A Esquerda está fragmentada? Ocupa tudo!

O inimigo mora ao lado? Ocupa tudo!

Abaixo a Rede Globo? Ocupa tudo!

Fora Temer? Ocupa tudo!

Allons enfants de la patrie? Ocupa tudo!

Capítulo II — Assembleia Ordinária

[…]

_ Há quanto tempo estamos aqui?

_ Não é um semestre. São vinte anos.

_ Parece que foi ontem.

_ Ó céus! Não vai acabar nunca…

_ Vamos respeitar as inscrições?

_ Fulano de Tal está inscrito.

_ Blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá.

Blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá.

Blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá.

_ Me sinto contemplada, mas blá blá blá blá blá blá.

QUESTÃO DE ORDEM: blá.

Eterna assembleia. Acontece até hoje. Nela se decidiu que Jorel Jogral Arósio, o esquerdomacho caviar, escreverá o livro de memórias. Por ser vaidade, lavro e boto fé.

Capítulo III — Diário de Bordo

Todo dia ela faz tudo sempre igual. “Bom dia, Ocupação!” às seis horas da manhã. Eu sempre tenho uma desagradável surpresa, mas pontual. Depois vem o café e é quase eucarístico pensar que há muita alma no pão: “Eu gostaria de estar aqui com vocês, acho lindo o que vocês fazem et cetera, trouxe comida e confiança et cetera, mas eu preciso dar no pé”. Naquela mesa tá faltando ele. Eu como e me calo. Muito cristão.

Rondar é preciso. Dormir não é preciso. A gente joga conversa fora. A gente ri até doer a pança. A gente se assusta e assusta os outros. Parecia o Capeta, mas era só uma gargalhada. Como a alegria assusta em tempo tão sombrio! Um baralho pra aguentar. Nenhum barulho. Muitos sustos de se cair duro pra trás.

A gente não quer só comer abobrinha: a gente quer falar abobrinha. A gente quer ir pra cozinha, a gente quer ouvir música na cozinha, cantar, dançar, fumar igual dragão e tomar uns goles escondido — escondido do militar, escondido do militante (alguns, inclusive, disputam o troféu de mais chato). Tem hora pra comer. Tem hora pra engolir. Tem hora pra bater palma pro cheff. Tem que lavar o prato. Lavar o banheiro com a língua. Já sabem da hora do cocô de todo mundo. O banheiro está sempre ocupado, pois estamos todos sempre ocupados. E tem aula sobre não sei o quê. Escrevem para o Facebook Tribune. Mas não pode falar com gente estranha. Sobretudo, gente vizinha de outra ocupação.

Tem assembleia. Tem ronda. Tem café. Tem comida. Um pé de manga com gosto de porcaria nenhuma e mais outro e mais outro. Assembleia que vai durar pro resto da vida. Não dormirás. O colchão de ar é desconfortável: pro lombo de quem carregou cadeira e de quem carregou a Ocupação nas costas. Vai descansar agora carregando medalha. O ronco igual motor de fusca mora ao lado, mas não faz nem cosquinha. Porque minha cabeça faz muito mais barulho do que isso: engole um sapo aqui, aponta dedo na fuça ali, sofre antes da hora, pede pra morrer. O café é amargo, mas dá pra engolir. As assembleias não; são só amargas mesmo. Os cartazes são coloridos, o céu é cinza. Tem hora pra comer. A comida dá errado, às vezes. Tem alvorada, tem passarada no anoitecer. Tem Dalva de Oliveira: um cigarro. Arnaldo Antunes: uma companhia. Maria Bethania: antes só que pessimamente mal acompanhado. De noite, eu rondo a faculdade. Desconfortável. Não dormirás. Hora disso, hora daquilo. Amargor. Susto. Gastura. Bom dia, estrupício.

EU É QUE NÃO FICO

NEM MAIS UM SEGUNDO

NESTE INFERNO

Mas, se eu for embora, eu irei junto.

E o pior: irei sozinho.

Aqui não… Não existe solidão. Para bem e para mal. Eu, que cheguei nesta belíssima cidade sem nenhum horizonte, só me faltava desapegar da ilustríssima solidão. Me desapegar do “não fui com a sua cara, fulaninho”. Desapegar da minha cara amarrada com a qual não foram. E me apegar a ela, se abusarem da boa-vontade. Desapegar de preconceitos. Desapegar da cabeleira debaixo de uma novíssima Lua Nova em Câncer. Disseram que eu sou maternal. Não paternal, mas maternal mesmo. Aliás, disseram que eu sou tanta coisa que acabei resignando e sendo todas elas. Disseram que queriam me adotar. E acabaram adotando, porque o emocional não aguentou. Talvez aguentou até demais.

Sai até catarro do meu nariz quando eu choro ouvindo “Coração de estudante há que se cuidar do medo, tomar conta da amizade”. A voz de brisa contra a poeira furibunda dos escombros. A eloquência contra a ira das marretas armadas até os dentes. A coragem que não tínhamos e descobrimos no susto. E, no susto, descobri que existe a página dois, epigrafada “Um por todos e todos por um”. Se tenho a primeira página cheia de ódio, na segunda descubro que, se um de nós beirar a hora mortis, eu sigo os passos de sua via crucis e ofereço a outra face.

O cristianismo está em nós, queira ou não queira. Assim como muitos outros –ismos que eu conheço e muitos outros –ismos que inventam sem me falar nada. Para Cristo, um bom dia com “Oh, happy day”. Jesus, aliás, é o que eu quiser que ele seja: Jesus pode ser eu, Pietá pode ser você. Para Nietzsche, sublimo a tragédia em arte cafona: “eu ia dizer que estava apaixonado, recebi o convite do seu casamento”. E é para o Coisa Ruim que incendeio abelhas, salgo caramujos em ritual e depois lavo a alma em um banho de mangueira, em um banho com um bando de gente apinhada no chuveiro. Para os Novos Baianos e seus novos credos, beije pessoas. Com a língua até a goela. Depois seque a alma e o corpo na avenida, sambando de calcinha e sutiã. De porre igual gambá. Se vir minhas cuecas no caminho, me avise. Deram a Elza e eu me pergunto: foi macumba? Eu sei que feitiço foi ouvir o canto da filha da sereia e não resistir — eu que resisto ao canto de até Marisa Monte.

Resistir: palavra tão cara. As plantas resistiram ao homem imaturo que caiu sobre elas feito jaca madura. Eu resisti também. Alguém resistiu à cebola, alguém resistiu à febre, alguém à dor de dente, ao fedor da bomba, do vinagre e ao cheiro de confusão. À milionésima batalha de rap. À bronca da mãe. À bronca dos filhos da mãe. A lágrima resistiu frente a tantos professores querendo arrancar pranto com a unha, sedentos igual planta do brejo. A mulher brejeira resistiu comigo: gente doida tem mais é que dar a mão. Resistiu a muita barba no cangote. Ela e mais outros resistiram às minhas lágrimas de crocodilo, às minhas lágrimas de vinho e de vodca vagabunda com ki-suco barato, o sacão paulista. E sempre ao drama insuportável, mais barato ainda. A muita história triste e muito teatro que não fui só eu. Vontade de assistir, vontade de encenar. Resistiram ao sono, aos copos sujos e aos bares copo-sujo. À insaciável vontade de comer peito de peru, verdura com angu, bolinho de arroz, bolo de chocolate, MC Donald’s e sopa. À insaciável vontade de comer alguém. À insaciável vontade de dar pra alguém. Alguém resistiu a armar o barraco e em seu coração armou um puxadinho. Ocupamos o puxadinho.

É isso que interessa. Brasília pegou fogo, mas está tudo bem: nossa ocupação deu errado, mas deu tudo certo. O que são, afinal, vinte anos congelados neste país tropical? Necas de pitibiriba! Afinal, o “bom dia” ficou mais doce e mais caliente! A assembleia mais amarga que café de fumante adoçou junto! Que mar de rosas! Quem tinha vontade de ir embora, não foi! Quem brigou, agora vai bem, obrigado! Quem foi, voltou pra dar as caras! Você só passa de vez em quando, mas como é bom te ver aqui, diz o rabo do cão régio zanzando. Somos mesmo infinitos. Vá embora para São Paulo, vá para o Espírito Santo, vá para o Amazonas, para a Rua São Paulo, Rua Espírito Santo, Avenida Amazonas e até para os Estados Unidos da América! Mas você não sairá desta página. É um jogo, ninguém sai.

Capítulo IV — O que acontece em Vegas

Apostei meu tédio

Minha solidão

E a roupa do corpo.

No fundo do teatro-cassino

A boa memória

A memória merremé

E a memória de merda

Bradam em uníssono:

Bingo!

Toda memória é um jogo de azar:

Em cada curva do encefálico labirinto,

o Pacman do olvido.

Memento móri, memória.

Memorize o texto

Memorize as marcações cênicas

Memorize as deixas

E nunca se esqueça

De ser descontínua

De enxertar falas

E flashbacks

Satirizar personagens

Queimar arquivos

Censurar

Mentir

Ser picareta

Na quarta parede

Manipular ângulos

E iluminação

Pegar os canhões de luz

Para deitar pólvora sobre a plateia

Pois em minha memória só existe cena

E só resiste quem contracena

Lembrar é arbitrário.

Cada cabeça, uma ditadura.

Façam o mesmo comigo

E para tanto não me peçam permissão.

A liberdade está nas ruas!

Sobretudo numa ruazinha toda de teatros-cassinos

Onde dois narradores se encontram

Calçada contra calçada

Inevitavelmente

Palavra contra palavra

Sem sequer dar-se conta disso

Mas têm o peito aberto pra poder dizer:

que bom que você deu o ar da graça!

Nasce assim outra memória

ávida de bastarda hereditariedade.

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