Preconceito

A quem interessa o racismo no futebol brasileiro?

Multifacetado e camaleônico, o racismo segue latente dentro das quatro linhas ‒ e faltam movimentos dispostos a verdadeiramente combatê-lo

Pedro Pacheco Trennepohl
Palavras Cruzadas

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Cinco de março de 2014. Em Bento Gonçalves, o Esportivo recebia o Veranópolis, em clássico serrano válido pelo campeonato gaúcho daquele ano. Antes e durante o confronto, Márcio Chagas da Silva, árbitro da ocasião, precisou aguentar constantes ataques racistas proferidos pela torcida mandante. “Eu já nem aquecia mais em campo na Serra, para evitar os xingamentos que eram costume. Mesmo assim, neste dia, eu escutei muita coisa da torcida da casa, o tempo todo, com o agravante de um policial em volta, sem em nenhum momento fazer menção de repreender esses torcedores.”

Márcio Chagas quando ainda apitava profissionalmente. Foto: Divulgação/CP

Encerrado o jogo, após escrever a súmula e tomar um banho, Márcio se preparava para retornar a Porto Alegre, imaginando que o pior já havia passado. Quando chegou ao seu carro, entretanto, foi surpreendido com o estado em que encontrou o veículo. Não apenas a lataria estava amassada e arranhada, como existiam bananas espalhadas pelo capô e dentro do escapamento. Indignado, decidiu ir a público se manifestar.

Foi neste momento que o árbitro se deparou com um racismo estrutural tão latente quanto aquele praticado por seus agressores de dentro do estádio, e que o fez sentir na pele as consequências de se levantar uma bandeira repudiada pelo caudilhismo dos que comandam nosso futebol. “Quando eu fiz a denúncia ao público no dia 6 de março, imaginei que a Federação fosse me dar um suporte. Muito pelo contrário, não me deu apoio nenhum, virando as costas. A posição do Noveletto (Francisco Noveletto, Presidente da Federação Gaúcha de Futebol na época) foi de me criticar, questionando se eu sabia o quanto a situação estava sendo prejudicial para a competição, para o estado e para o próprio Esportivo. Eu respondi perguntando como eu deveria ficar nesta história, e ele disse que eu já estava acostumado com esse tipo de coisa e que pagaria o conserto do meu carro. Mas eu não estava pedindo dinheiro, e sim respeito.”

Ex-árbitro fez questão de registrar os ataques feitos a seu carro. Foto: Márcio Chagas da Silva/Arquivo Pessoal

Apesar das represálias recebidas internamente, em momento algum Márcio foi afastado dos gramados por parte da Federação. Assim, tratou de responder tamanha intolerância dentro de campo, com o alto nível que lhe era rotineiro. Ao final do campeonato, foi eleito, pela quinta vez em sua carreira, o melhor árbitro do torneio. O prêmio foi o último recebido por um negro. “Eles (Federação) até não tiveram tempo de me repreender, acredito que por eu ter sido recebido pela presidenta Dilma Rousseff pouco depois do episódio, o que fez com que ficassem com medo de me cortar, imaginando que eu tivesse alguma ligação política. Mas a represália ficou para os outros, que não tiveram oportunidade. O último árbitro negro a apitar no campeonato gaúcho fui eu, em 2014.”

Menos de duas semanas após o fim do Gauchão, Márcio decidiu se aposentar da função de árbitro ‒ embora não tenha abandonado completamente o apito. Do trabalho dentro de campo, tornou-se comentarista de arbitragem da RBS TV, função que ocupa até hoje. Dentro da imprensa, deparou-se com uma classe que esbanja indiferença no tratamento dispensado a casos de preconceito no esporte. Uma dolorosa realidade que não é exclusiva do Rio Grande do Sul.

Recentemente, o jornalista Elton Serra viu seu texto intitulado ‘O jornalismo esportivo não está preparado para discutir sobre racismo’ viralizar nas redes sociais. Baiano, ele entende que, embora não seja intencional, e sim um reflexo de profissionais despreparados, a inaptidão da imprensa não deixa de ser extremamente prejudicial para a população negra. “Hoje é raro ver um negro ser destratado publicamente nos veículos de comunicação, porém, ao adotar o ‘politicamente correto’, a imprensa se afasta da discussão sobre igualdade racial no esporte e se aproxima do racismo estrutural. Fechar os olhos para essa discussão é, sim, continuar alimentando o preconceito racial no futebol.” Para Márcio, o caminho para superar essa incompetência passa por maior representatividade nos meios de comunicação. “Enquanto não tiver uma mudança estrutural, com negros ocupando no mínimo 40% das redações para então tratar do assunto, nosso jornalismo não vai estar preparado para debater o racismo.”

“Quando acontecem eventos que vão além do jogo, como racismo, se apoiam (jornalistas esportivos) em muletas criadas no passado por não estarem prontos para o debate.” Elton Serra. Foto: Reprodução/Site Espn

O espelho de Galeano pode ser mais ativo.

Conhecido escritor uruguaio, Eduardo Galeano costumava apregoar que o futebol é o ‘espelho do mundo e da realidade’. Seguindo essa linha, Márcio compara o preconceito da sociedade brasileira àquele presente no esporte mais popular do país: “São mais de 400 anos sem que o racismo seja tratado como deveria, de maneira prioritária, e isso se reflete no futebol. Ele não é uma sociedade à parte, apenas uma continuidade, que serve para revelar o melhor e o pior das pessoas. Ali, elas externalizam tudo em questão de 90 minutos.”

Por mais apavorante que soe, o comentário do ex-árbitro deixa claro que, assim como amplifica o mal, o futebol também pode semear o bem. É o que pensa Elton Serra, lembrando que o esporte já serviu de agente político em outras ocasiões: “O futebol é um esporte que se mostrou ser capaz de mobilizar nações. Já parou guerras, já uniu povos. É a única ferramenta que pode juntar, numa arquibancada, duas pessoas de classes sociais totalmente distintas.”

Acontece que a contemporaneidade tem revelado muito mais a face negativa do que a positiva do desporto. O Observatório da Discriminação Racial no Futebol é um projeto que tem por objetivo fiscalizar e publicizar episódios de preconceito relacionados ao esporte mais popular do planeta, acreditando na força deste para debater, alertar e conscientizar sobre a problemática da intolerância racial nele presente. Anualmente, o grupo divulga relatório com todos os casos que acompanhou ao longo de uma temporada. A mais recente publicação registrou 43 ocorrências.

Referente a 2017, o número é o mais elevado dos últimos quatro anos, embora esteja prestes a ser superado. Pelo menos, é esta a previsão do diretor executivo do Observatório, Marcelo Carvalho, para 2018. “Os números ainda não foram publicados, mas, até o momento, especificamente de racismo no futebol, a gente tá trabalhando com 53 casos, o que deve representar 20% do que acontece de fato. É o maior número de todos os anos, confirmando uma crescente que é reflexo de um aumento dos casos, pelo momento político do Brasil, e das denúncias, por uma conscientização dos atores (jogadores e torcedores), que estão entendendo a necessidade de denunciar.”

Passados pouco mais de 6 meses da abertura da temporada, números seguem tendência de crescimento em 2019. Foto: Reprodução/Instagram Observatório (@observatorioracialfutebol)

A esperança

Historicamente conhecido como o time do povo em seu estado, o Esporte Clube Bahia tem se destacado nacionalmente como uma instituição capaz de transcender o jogo e discutir problemáticas sociais. Honrando sua tradição, o clube vem abraçando pautas que defendem a heterogeneidade dentro de sua torcida e da sociedade como um todo. Servindo de sustentação a tais práticas, a repercussão tem sido extremamente positiva, como destaca Elton: “Uma minoria acredita que o Bahia tem se tornado um clube com pautas de esquerda. A maioria, no entanto, encara justamente como parte do compromisso que um clube de futebol tem com a sociedade”.

A campanha #BahiaClubeDoPovo, símbolo de um clube empático e engajado. Foto: Reprodução/Perfil Bahia Twitter (@ecbahia)

Recentemente, no dia primeiro de junho, Bahia e Grêmio se enfrentaram em partida válida pelo Campeonato Brasileiro. Ambos os clubes atuaram com um logo do Observatório em sua camiseta, ao lado do símbolo, dando visibilidade à causa. A iniciativa, capaz de emocionar Márcio Chagas, foi comandada por Marcelo. “A ideia partiu da nossa parceria com o Bahia e do contato com o Grêmio, que vinha nos procurando para fazer uma campanha que fosse além do simples marketing, capaz de conscientizar. Além disso, os clubes acharam importante leiloar as camisas e reverter a renda para o Observatório, para mostrar que somos um projeto voluntário que precisa de recursos financeiros.”

Roger Machado, único técnico negro da elite do futebol brasileiro, comandante do Bahia, com camisa da campanha do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Foto: Reprodução/Instagram Observatório (@observatorioracialfutebol)

A parceria comprova que é possível acreditar na chegada de novos e mais politizados tempos. Afinal de contas, se a luta antirracista é um dos pilares de sustentação de uma sociedade democrática, ainda mais em um país tão desigual quanto o Brasil, por que não usar a principal paixão nacional para impulsionar esta causa? O pontapé inicial da partida contra o racismo já foi dado, e o adversário promete fazer jogo duro. De que lado você vai ficar?

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