Patrimônio Público

(Des)Construção Histórica

Entraves e soluções para a preservação do patrimônio histórico e cultural de Porto Alegre

Arthur Mezacasa
Palavras Cruzadas

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Praça da Alfândega, na Rua dos Andradas, reúne construções de diversos estilos arquitetônicos/foto: Arthur Mezacasa

Ao caminhar pela Rua dos Andradas, no Centro de Porto Alegre, é possível viajar no tempo. Nela, podemos observar os diversos estilos arquitetônicos que marcaram o desenvolvimento da cidade, desde o Barroco tardio da Igreja de Nossa Senhora das Dores até as linhas sinuosas que marcam a revitalização da orla do Guaíba. Essa viagem só é possível porque os edifícios que nos transportam para outras eras estão ali contando as histórias do passado. Porém, nessa mesma rua, há prédios que não mais são capazes de contar histórias.

Na altura da Praça da Alfândega, a Andradas é bloqueada há mais de dez anos por tapumes que recobrem o Centro Cultural Caixa, que deveria estar operando no prédio do antigo Cine Teatro Imperial. O espaço cultural foi proposto ainda em 2008 pelo banco em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre e restauraria um dos principais expoentes do estilo Art Déco no Brasil. As obras, que deveriam ter sido finalizadas ainda em 2010, estão paradas desde 2017 e não têm prazo de entrega. E esse infelizmente não é um caso isolado.

A poucas quadras da Praça da Alfândega, a Usina do Gasômetro segue fechada há quase dois anos. Uma revitalização, proposta pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC) no início do governo Marchezan, está paralisada esperando a execução do plano de prevenção contra incêndio (PPCI) e encaminhamento para licitação.

Esse cenário, apesar de não ser animador para a população, tem motivo para perdurar. Alguns profissionais da área têm a visão de que órgãos responsáveis pela legislação e elaboração de diretrizes de preservação de patrimônio estão mais preocupados com a parte burocrática da obra do que com a urgência da preservação em si.

Utilização para preservação

Responsável pela ressignificação — espécie de reforma — de um dos casarões da Rua Santa Terezinha, no Bairro Farroupilha, o arquiteto Rodrigo Gamboa diz que muitas vezes o patrimônio se perde por não cumprir uma função prática: “O edifício, sem alguém que ocupe e dê um uso a ele, não tem porquê ser preservado. O pessoal acaba nem percebendo que ali existe um local com potencial econômico e também cultural”. Apesar da parte externa do casarão ter sido mantida, a intervenção feita ali é considerada uma ressignificação, pois o interior foi modificado e não mais apresenta as características originais da época.

A cafeteria Senhorita Margô está instalada em um casarão antigo ressignificado/foto: Instagram @senhoritamargo

Nesse caso, Gamboa e sua esposa fizeram a adaptação para instalar no local seu escritório de arquitetura e uma doceria. “Quando alguém viaja para o exterior e vê aquelas cafeterias com mesinhas na rua, eles acham legal. Aqui no Brasil não se tem isso porque as pessoas têm medo da rua. Mas lá fora a segurança existe justamente porque a rua tem movimento, tem circulação”, aponta, ao mostrar o pátio da edificação tomado por mesas e cadeiras coloridas.

Essa visão, de utilização como forma de conservação da história também é defendida por Lucas Volpatto, professor da Universidade Ritter dos Reis e integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS). Para ele, essa situação é uma forma sustentável de se manter a memória histórica no Brasil. Considerando que problemas de financiamento frequentemente são a causa da perda do patrimônio, haver um agente que ocupe o espaço, mesmo promovendo modificações no edifício, é, na opinião dele, algo positivo. Ele cita o exemplo dos prédios da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): “Onde tu tinha um acabamento em madeira, é colocado um de metal — para maior durabilidade. Apesar de ser feita uma modificação, o prédio acaba sendo cuidado”.

Porém, é importante ressaltar que, dependendo do nível de inventário em que esteja presente um edifício, essas modificações são mais ou menos possíveis. No caso de bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), modificações na edificação dependem de processo que passa por vias judiciais. E esse é um dos problemas que atinge de forma mais agressiva os órgãos que trabalham com a preservação de bens.

A Justiça como empecilho

Agentes judiciais não têm a qualificação necessária para julgar quais edificações têm importância artística e histórica, nem para decidir o destino que é dado à elas. Essa é a visão de Oritz Campos, presidente da Comissão Temporária de Patrimônio Histórico do CAU/RS. “Há casos em que é liberado judicialmente o uso de brasilit em edifícios listados, para acelerar um suposto processo de preservação.”

Um caso emblemático em que trâmites legais dificultam a efetiva conservação da história de Porto Alegre é o da Casa Azul, da Rua Riachuelo, no Centro. Ameaçando desabar, o casarão está desde abril de 2019 passando por obras emergenciais de estabilização estrutural. A empresa encarregada pela realização do serviço foi contratada sem licitação e está sendo paga com dinheiro da prefeitura, que afirma que cobrará reembolso da família dona do imóvel após a finalização da obra. Essa, porém, é apenas a ponta de um iceberg em ruínas, que há um ano encontra-se bloqueando a esquina da Riachuelo com a Marechal Floriano.

Por encontrar-se em más condições, em 2016 foi autorizada pela 3ª Vara da Fazenda Pública a demolição da edificação. Nessa ocasião, foi definido que o município deveria pagar uma multa por descaso com a Casa e os proprietários foram absolvidos. Em segunda instância, porém, os donos foram responsabilizados a financiar, com a prefeitura, a restauração do bem. No vai-e-vem da Justiça, a restauração não foi realizada, e a estrutura teve que ser isolada por oferecer risco aos transeuntes. A empreitada que ocorre agora, ao custo de quase R$ 400 mil, ainda não é a restauração, é apenas um reforço na estrutura da fachada, o que mostra o tamanho do descaso que pode ser acarretado pela excessiva burocratização.

“Justamente para evitar esses problemas, o CAU está elaborando iniciativas de educação patrimonial e conscientização”, alega Campos. A burocracia é importante, pois, através da listagem dos bens históricos, é possível fazer uma quantificação e qualificação do estado de conservação das edificações, promover a restauração ou ressignificação e atuar com órgãos que possam fazer esse serviços em âmbitos que o CAU não tem influência.

Nesse ponto, a instituições legais têm um entrave menos visível, mas tão feroz quanto a burocracia: a opinião pública. O caso da Catedral de Notre Dame de Paris pode ilustrar a situação, já que existe uma divisão bem definida entre um grupo que defende que o telhado do templo deve ser erguido tal como era anteriormente e outro que defende uma “modernização”, que ligaria a história do prédio com a atualidade.

Tanto os conselheiros do CAU quanto Gamboa são unânimes em considerar a função social do patrimônio como um ponto crucial na criação de legislação envolvendo o tema e também na elaboração de projetos que concretizem de forma viável a preservação dos bens.

Volpatto, mencionando um projeto que atualmente está em andamento em Santa Clara do Sul — que consiste na criação de um “mercado público” em um antigo pavilhão industrial — afirma que, sem uma estratégia bem definida, locais como esse acabam virando centros culturais capengas, quase sem orçamento e com pouco impacto efetivo na população.

Revitalização da Orla do Guaíba é um case de sucesso/foto: Arthur Mezacasa

A revitalização da Orla do Guaíba, apesar dos atrasos e do alto custo de implementação — cerca de R$ 70 milhões — tem se mostrado um caso interessante. A área é utilizada para lazer e prática esportiva e concilia comércio e cultura, por conectar novamente a população ao corpo d’água que influenciou o surgimento de Porto Alegre.

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Arthur Mezacasa
Palavras Cruzadas

Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul