Esporte

Jornalismo Esportivo: um sonho para quem?

Conheça histórias de meninas que entraram na faculdade com o desejo de trabalhar numa área predominantemente machista

Flávia Simões
Palavras Cruzadas

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O jornalismo esportivo como um sonho para elas também/Foto: FreePik

“Você sabe o que é impedimento?”, “Então diz a escalação do seu time”, “Quer trabalhar com isso pra ficar perto de jogador”. Comentários assim são frequentes na rotina de mulheres que possuem interesse em esportes — principalmente o futebol.

Ser mulher e gostar de esporte é uma tarefa difícil. Agora imagine ser mulher e tentar cobrir um jogo de futebol para a imprensa. Complicou, né? Entretanto, o mercado vem sendo aberto por diversas jornalistas que trilharam o caminho e hoje tornam esse ambiente cada vez mais inclusivo para as estudantes que sonham em trabalhar no meio.

“Acho que a gente tem muita representatividade hoje em dia e muita gente em quem se inspirar que antes não existia. Isso é incrível, a gente ter noção de que podemos ocupar um espaço também, que não é só dos homens” diz Júlia Teixeira, estudante de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Com a certeza de que quer seguir carreira em coberturas esportivas, Júlia está prestes a se formar. A aluna, inclusive, está desenvolvendo seu trabalho de conclusão de curso sobre a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) em sua crise de 2015.

Frequentadora assídua da Arena, relata que numa final de Libertadores, ao fazer comentários sobre o jogo, o homem que estava ao seu lado disse: “Então tu entende mesmo, né?”. “Claro! Não é porque sou mulher que não vou entender o que está acontecendo no jogo”, respondeu ela. Situações assim ajudam a firmar o estereótipo de que, se você é mulher, consequentemente, não entende de futebol. Por isso, é importante se firmar.

Ao contrário de Júlia, que já está terminando a graduação, Luíza Dementhusk cursa primeiro o semestre de jornalismo pela UFRGS e entrou com o objetivo de estar mais próxima do que ama: o surfe.

Luiza, estudante de jornalismo, surfando em Santa Catarina /Foto: arquivo pessoal

Surfista, escolheu o jornalismo para unir sua vontade de contar histórias com a de estar mais perto do esporte que pratica. Consumidora de conteúdos voltados à modalidade, devido à falta de opções, acaba acompanhando os circuitos através de canais pagos como a ESPN. A emissora, no ano passado, ao exibir a sétima etapa do Campeonato Mundial de Surfe, o primeiro evento do ano exclusivamente feminino, contou com uma cobertura composta apenas por mulheres. Entretanto, Luíza relata que o público não recebeu o trabalho da mesma maneira: “Embora democrático, o surfe ainda é muito machista e acredito que isso está tanto nas pessoas que praticam quanto nos produtores e na mídia”.

A má cobertura dos veículos tradicionais também é algo que a incomoda bastante, um exemplo é quando a mídia dá uma atenção excessiva ao surfista Gabriel Medina. Ela quer, através do jornalismo, trazer reconhecimento a outros atletas, além de ajudar a criar um espaço mais inclusivo. “Nós (mulheres) temos que criar o nosso espaço e, num veículo que não é integrado a essa grande mídia, temos que criar um espaço vezes dois.’’

Não pertence a um gênero

É comum que meninos entrem na faculdade de jornalismo com o sonho de trabalhar com esporte. Mas por que quando uma menina faz isso causa tanto espanto?

Sandra de Deus, professora da disciplina de jornalismo esportivo da UFRGS, conta que desde a criação da cadeira, em 2005, o número de meninas foi aumentando de maneira gradual. Atualmente, as aulas são bem procuradas pelo público feminino. “Se antes elas entravam porque queriam abrir esse espaço de trabalho, hoje elas têm pautas muito específicas, como abrir espaço para própria divulgação do esporte feminino.’’ Também reforça que entre alunos e alunas não tem distinção: “Na análise, no debate, na escrita, as meninas não têm diferença nenhuma”.

As pessoas duvidam que mulheres entendam de esporte tão bem quanto homens devido ao um reflexo de uma sociedade machista. Se criou aquela ideia de que futebol é um esporte de homem e que só homem pode entender, visão ultrapassada que, infelizmente, ainda se mantém presente. Além disso, é comum a mulher que frequenta os estádios e, principalmente, que pratica o esporte, ser estereotipada como homossexual.

“Eu fui alguém que cresci lutando para ser a menina que jogava futebol com os coleguinhas, que ia nos estádios assistir a um jogo. Tive que lutar demais, mas as pessoas sempre acharam que era uma fase, que eu ainda não sabia quem eu era, se gostava de menino ou de menina”, conta Dana Moraes, estudante de jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Para ela, o jornalismo e o futebol sempre andaram juntos na sua vida, então sempre foram sua primeira opção. Mas foi difícil de lidar com os constantes comentários a respeito, inclusive dentro de casa. Dana acredita que é necessário que as mulheres continuem juntas nessa luta por espaço, por isso quer se especializar como radialista e comentarista, uma vez que a presença feminina nessa área ainda é baixa. Assim, como qualquer outro torcedor, estar no estádio é uma das suas maiores satisfações, tanto como torcedora quanto como jornalista.

Andressa Souza tem esse sentimento pelo estádio também. “É o lugar em que eu acho minha paz, quando eu tô cheia de problemas eu vou pra lá. Eu grito, eu xingo, mas me acalma”, diz. Cursando jornalismo pela Universidade Ritter dos Reis (UniRitter), ela teve a influência do pai no amor pelo Grêmio, e nasceu daí a vontade de fazer jornalismo: para ficar mais próxima ao time.

Andressa, estudante de jornalismo, na Arena/ Foto: arquivo pessoal

Por estar constantemente envolvida, ela aprendeu a não ligar para perguntas de cunho machista. “Eu sei o que é impedimento, eu sei qual a escalação, eu sei tudo. Eu vou com os meus amigos nos jogos e debato de igual para igual com eles.’’ Ver mulheres em diferentes veículos falando sobre esporte foi algo que a ajudou a criar um pouco dessa confiança. Perceber que, se uma chegou lá, ela pode chegar também.

Nem sempre foi assim

Renata de Medeiros, jornalista esportiva da GaúchaZH, relata que demorou para entender que situações de assédio eram erradas. Para ela, era normal que uma mulher dentro do esporte passasse por determinadas situações, justamente por ações como essa estarem naturalizadas. Durante sete anos trabalhando nesse meio, foi só após passar por uma situação de violência dentro do estádio que percebeu que enfrentava aquilo unicamente por ser mulher. Após reagir a xingamentos feitos por um torcedor, a jornalista foi agredida com um soco. Depois do ocorrido, o homem foi levado ao Juizado Especial Criminal (Jecrim), e a repórter prestou boletim de ocorrência.

Uma das precursoras da campanha Deixa Ela Trabalhar — iniciativa de jornalistas da mídia esportiva para acabar com o assédio moral e sexual sofrido dentro dos estádios, ruas e redações -, diz que o projeto foi para ela uma forma de salvação após a agressão. “Eu transformei toda dor que estava passando em uma energia transformadora de mundo. Eu queria muito transformar o mundo em um lugar bom para mulheres”. A jornalista acredita que os resultados do movimento ainda vão demorar para aparecer dentro das redações.

Porém, fora das redações, as mudanças já são perceptíveis. A estudante de jornalismo da UFRGS Bruna Jacobovski acredita que a campanha foi um dos motivos que inspirou meninas a acreditarem que era possível trabalhar nesse ambiente.

Bruna conta que tudo começou porque, de todas as possibilidades que o jornalismo a proporciona, o esporte é a que a mais agrada. Como estudante, se sente esperançosa por estar sendo representada, ideia que alguns anos atrás não tinha. Além disso, vê que muitas de suas colegas com o mesmo desejo que o seu se empenham em mostrar outras modalidades e dar destaque às atletas mulheres.

Iniciativas assim são necessárias, ainda mais quando uma pesquisa realizada pelo Monitoramento Global de Mídia avaliou 18 mil notícias esportivas publicadas em 23 países, incluindo o Brasil, e mostrou que 85% das matérias eram sobre atletas e modalidades masculinas.

Ainda que em gradual transformação, a mídia esportiva continua sendo majoritariamente machista. O crescimento do número de futuras jornalistas interessadas em trabalhar com o esporte é necessário para que o ambiente se torne cada vez menos tóxico e que o público que o consome entenda: a única diferença entre uma cobertura masculina e feminina é o tom da voz.

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Flávia Simões
Palavras Cruzadas

“Ser jornalista é ter o privilégio de poder contar histórias reais “ — Jornalismo, Ufrgs