Crença

O mantra que ecoa da Azenha

Quem são e no que acreditam os Hare Krishna que habitam a capital gaúcha

Júlia Diefenbach
Palavras Cruzadas

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Monge distribui doces durante o Ratha Yatra, no Parque da Redenção / Foto: Júlia Diefenbach

Em um espaço pequeno no bairro Azenha, em Porto Alegre, sapatos são deixados do lado de fora. O som de cânticos e o cheiro de incenso emanam do lugar onde se pisa descalço. Situado na Rua 20 de Setembro, o templo Hare Krishna da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna (Iskcon) é lar para monges, abrigo para viajantes missionários, local de adoração para devotos e sagrado para todos esses. Ali reside o que Manohara Saciputra Das, um monge de 25 anos que faz parte do movimento há três, chama de “uma cultura teocêntrica”.

Altar dedicado a Bhaktivedanta Swami Prabhupada, líder espiritual indiano e fundador da Iskcon / Foto: Júlia Diefenbach

O movimento Hare Krishna, originário da Índia e aportado no Brasil em 1974, é regido por quatro princípios: não comer nenhum tipo de carne nem ovos, não se intoxicar — o que inclui o café, que é uma substância psicoativa — , não fazer sexo fora do casamento e não jogar jogos de azar. Além disso, a prestação de serviço e o desapego material são alguns de seus pilares centrais. “Nós não somos proprietários de nada”, explica Manohara. “Se a gente tem o necessário pra nossa manutenção, o excedente deve ser distribuído livremente, gratuitamente.”

Apesar de fazerem parte do panorama da cidade, a percepção sobre os devotos ainda é permeada de equívocos. Muitos confundem suas cabeças raspadas com as dos monges budistas, e alguns se referem a eles, erroneamente, como hinduístas. “Hindu” é a forma como os muçulmanos chamavam os indianos que viviam do outro lado do rio Sind, na Índia. “O termo pegou e se usa”, afirma Marcos Silva da Silveira, doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília que acompanhou o movimento Hare Krishna no Brasil entre 1995 e 1998. “Mas é um termo mais geográfico que acaba designando uma região cultural e o seu complexo religioso, que é muito vasto.”

As ruas

A figura dos devotos dessa cultura distribuindo livros em espaços públicos é assimilada pela capital, mas não é compreendida. Segundo Manohara, é um erro percebê-los como vendedores de livros. “A mentalidade [de quem distribui livros] é que ele tá ajudando essas almas pra que elas não fiquem presas no Samsara, que é o ciclo de nascimentos e mortes”, esclarece. “A gente tá indo dar esse conhecimento, as pessoas colaboram e, com a coleta que a gente faz, a gente serve mais pessoas ainda.” Esse trabalho se mostra efetivo, já que são muitos os casos de pessoas que chegaram até o movimento através das demonstrações públicas de fé dos participantes.

Em 1994, por exemplo, Simone da Silva, hoje com 42 anos, via um Hare Krishna subindo a Avenida Osvaldo Aranha sempre que pegava um ônibus naquela rua para ir ao trabalho. Apesar da figura despertar sua curiosidade, Simone nunca tinha tempo de parar para conversar. Ela só o fez em uma das festas de final de ano no Gasômetro em que os adeptos marcavam presença cantando e falando sobre Krishna. As conversas com os devotos a levaram a visitar o templo pela primeira vez. “Quando eu vi o altar, eu disse assim: ‘tudo isso eu já conheço’”, relata. “Me deu um déjà-vu.” Desde então, Simone não saiu do movimento.

O contato com o público pode resultar em experiências como a de Simone, mas abre margem para a criação de um imaginário popular falho em torno dos adeptos à doutrina. Ainda assim, Manohara acredita que as pessoas têm não só curiosidade, mas respeito pela cultura. “Eu sinto isso, que as pessoas respeitam muito e compreendem que existe seriedade nesse processo”, ele afirma. “Quem aceitaria isso? Quem aceitaria se vestir dessa maneira, renunciar tudo isso, ficar em pé tantas horas abordando as pessoas, tolerando ofensas e insultos? Quem suportaria isso por nada?”

As redes sociais

No período em que o pesquisador Marcos conviveu com os integrantes desse grupo, na segunda metade dos anos 90, a internet não era proeminente como é hoje, mas já existiam práticas que possibilitavam a disseminação de suas crenças. Ele conta que havia a distribuição do que eles chamavam de “livros pequenos”, que continham uma lista de endereços e telefones dos templos e centros no Brasil no final. Agora, essa lista é complementada por endereços de e-mail, sites e páginas.

Manohara faz uma pregação ao vivo através do Facebook / Foto: Facebook/Reprodução

Manohara passou a utilizar as redes para transmitir aulas ao vivo e se comunicar com pessoas que queriam saber mais sobre sua fé e seus costumes, expandindo o alcance de suas palavras para além do templo. Por isso, ele não acredita que a tecnologia deve ser renunciada. “A gente deve renunciar o uso indevido dela”, observa. “Pra mim, é muito mais conveniente não ter celular, porque é uma burocracia, é uma demanda a menos, mas nós devemos aceitar inconveniências em função de um propósito superior.”

O uso de ferramentas digitais, para os Hare Krishna, tem mais de um propósito. Max Pinho, um monge de 28 anos natural do Piauí, conheceu os devotos em Recife e passou por cidades como Curitiba, Florianópolis e Itajaí até chegar em Porto Alegre. Para ele e muitos outros que também fazem jornadas missionárias, as redes sociais mantém ao alcance aqueles que estão longe. “Hoje, minhas redes sociais são pra pregação e pra manter contato com essas pessoas que eu conheci durante as minhas viagens”, afirma Max.

A alimentação

Em uma das minhas visitas ao templo da Iskcon, entro na cozinha do local para me despedir de Simone. Pacientemente, ela me diz que não posso entrar ali porque não estou purificada. “A cozinha é o local mais sagrado depois do altar, pois é onde os alimentos são preparados para as deidades”, explica Marcos. “Para entrar nela é preciso passar por uma purificação, mas você poderia ter sido purificada se elas quisessem. Nas casas também, a cozinha é um lugar muito consagrado.”

Para os Hare Krishna, a alimentação tem significado: prasada, que significa “misericórdia” em sânscrito, é o modo como chamam a comida vegetariana que é oferecida a Deus em um altar e, depois, consumida. Eles seguem a cultura védica e, portanto, são lactovegetarianos — se alimentam à base de plantas e leite — e entendem todos os seres como criações de Krishna. Antes de se tornar monge, Manohara era vegano. “A cultura védica não recomenda o veganismo. Ela recomenda proteção às vacas e a inserção das vacas como algo fundamental na vida humana”, afirma. Ele cita o consumo de leite e frutas como algo que é aconselhado.

Ratha Yatra no Parque da Redenção / Foto: Júlia Diefenbach

A distribuição de refeições para quem necessita ocupa um espaço importante dentro do movimento. No festival das carruagens, o Ratha Yatra, que ocorreu no Parque da Redenção em 7 de abril deste ano, a prasada foi entregue de graça para quem passava por ali, devoto ou não, com direito à repetição. No final do festival, um monge comentou sobre a mobilização do movimento para que as Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa/RS) repassem para eles as comidas próprias para consumo que seriam jogadas fora.

A identidade

Na Iskcon, o processo de iniciação formal dos Hare Krishna consiste na escolha de um mestre espiritual que, além de orientar e servir como um guia, se conecta com o devoto. Essa relação permite que o mestre decida qual será o nome espiritual, em sânscrito, que o adepto receberá; geralmente, ele tem a mesma letra inicial do nome de nascença e é condizente com a personalidade da pessoa. Manohara já é iniciado, Max está passando pelo processo e Simone ainda não se sente preparada para iniciá-lo.

O descolamento do nome que lhe fora dado ao nascer e o mergulho em uma crença vinda de longe não mudaram a relação de proximidade que Manohara cultiva com seus pais, moradores do interior do Rio Grande do Sul, que são cristãos, mas transitam entre o cristianismo de diversas igrejas. “Quando os devotos passam pela cidade em que a minha mãe mora, ela fica muito feliz, ela quer que eles fiquem mais dias”, conta. Já Max afirma que, no início, foi um choque para seus pais, que são evangélicos. “Hoje em dia, eles… Ok”, diz, rindo.

A aceitação da mãe de Simone, que é católica, quanto à fé de sua filha aumentou conforme ela percebeu a seriedade com que Simone tratava essa parte de sua vida. Ela conta que, recentemente, quando cantava uma meditação, seu filho a fez uma pergunta. A mãe de Simone disse para seu neto esperar porque ela estava rezando. “Em outro momento, ela jamais diria isso”, explica.

A singularidade dos Hare Krishna ultrapassa a sonoridade estrangeira de alguns de seus nomes e a tonalidade vibrante de suas vestes; seus princípios de tolerância e de não-violência possibilitam uma coexistência admirável com outros credos. “Krishna, Jeová, Alá são nomes diferentes de Deus”, diz Manohara. “Deus é um, mas se dirigem a Ele de maneiras diferentes por questões culturais, porque Ele se manifesta de acordo com tempo, local e circunstância.”

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