A luta pela reforma agrária popular é a discussão central do MST desde seu início, em 1984 / Foto: Mariana Alves

Agroecologia

O poder da agricultura de vida

Como a produção orgânica mudou a economia e o cotidiano de assentados da Reforma Agrária no Rio Grande do Sul e se tornou referência na América Latina

Duda Romagna
Palavras Cruzadas
Published in
7 min readJul 10, 2019

--

“Todos os agrotóxicos são armas químicas, todos os adubos são explosivos, todos os tanques de guerra nada mais são do que um trator com uma carcaça e um canhão.” De acordo com Sebastião Pinheiro, agrônomo e especialista em engenharia florestal, a agricultura foi radicalmente modificada a partir do final do século XIX, quando adubos químicos começaram a ser transformados para uso bélico. “Toda a ureia que você usa, todo sulfato de amônio são armas de terrorismo até hoje. Quando eu preciso de um adubo, eu o fabrico, mas, se por um acaso rebentar a guerra, eu mudo essa fábrica e ela vira militar.” A possibilidade de destruição em massa criou uma agricultura “onde não se respeitava mais a vida”, portanto, nas palavras de Pinheiro, “uma agricultura de morte”. Segundo o especialista, essa nomenclatura faz referência à inviabilização, ou morte, dos solos carregados de agrotóxicos e às doenças que essas substâncias causam nos seres humanos.

Sebastião Pinheiro foi palestrante no 3º Seminário de Agricultura Orgânica em Nova Santa Rita / Foto: Maria Eduarda Romagna

Pinheiro, referência em agroecologia na América Latina, foi um dos especialistas que levaram ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) o debate acerca da produção orgânica. “O poder faz com que algumas coisas que não interessam a ele fiquem no limbo”, declara. Há aproximadamente 25 anos, trabalhadores assentados da Reforma Agrária vêm cultivando produtos sem agrotóxicos no Rio Grande do Sul. “O que gerou o início (da agroecologia) nos assentamentos foi a intoxicação de nossos assentados pelos agrotóxicos, começou uma discussão sobre saúde e alternativas. Não foi fácil, precisamos de muita tecnologia e de muita parceria com o Instituto Riograndense de Arroz (Irga), Institutos Federais e Universidades, no que tange aos laboratórios”, diz Nilson Pilati, integrante do movimento e gerente da Loja da Reforma Agrária, no Mercado Público de Porto Alegre.

A produção agroecológica representa resistência e inovação frente às práticas do agronegócio, como a Reforma Agrária frente aos latifúndios. Segundo o agrônomo e especialista em agroecologia e administração de cooperativas Edson Cadore, no MST o processo foi facilitado pelo modelo de cooperação já existente nos assentamentos. “Primeiro você tem que fazer um debate com as pessoas, muita gente resistiu porque já fazia de uma maneira (do agronegócio).” O cooperativismo é um modelo de organização econômica e social que se baseia na participação de associados nas atividades econômicas visando o bem comum. De acordo com a ecóloga Laura Regina Cardoso Krolow, é uma estratégia utilizada pelos agricultores para se inserir no processo de comercialização e um dos principais elementos para o desenvolvimento de regiões baseadas no setor primário. “A formação dessas instituições associativas torna os participantes mais ativos e críticos a modelos que não resolvem suas necessidades”, relata.

O alimento como ato político

A loja 15 do Mercado Público emprega filhos de assentados desde 2002 / Foto: Maria Eduarda Romagna

Conforme Pilati, a relação comercial na agroecologia não é uma venda, mas sim uma troca e um ato político. Apesar do caráter sustentável da atividade, o maior problema enfrentado na etapa de comercialização é o preço, que não é acessível para os bolsões populares. “Por dois ou três centavos, quem não tem dinheiro escolhe o mais barato e consome veneno.” Uma possível saída para baratear a produção e consequentemente o produto final seriam políticas públicas de incentivo aos produtores. Ainda segundo Pilati, exemplos disso seriam o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que, em parceria com as cooperativas, repassam alimentos orgânicos para escolas da rede pública de educação, e também o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

Saúde e qualidade de vida

“Os agricultores se sentiam envenenados dentro do modelo de produção do agronegócio. As mudanças são dimensões econômicas, políticas e de saúde”, declara Cadore lembrando o início das discussões sobre a agroecologia. Segundo os próprios assentados, com o uso de agrotóxicos, alguns agricultores desenvolveram doenças graves, como paralisias, doenças cardiovasculares e até câncer. “O agricultor quando não usa veneno não está protegendo só a vida dele, mas também a de todos”, constata Pinheiro. Além da saúde do produtor, entra em jogo a saúde do consumidor final. De acordo com Pilati, grande parte dos clientes, chamados por ele de colaboradores, da Loja da Reforma Agrária são atraídos justamente porque buscam por uma melhoria na qualidade de vida. A maioria do público se constitui por casais novos com crianças pequenas e idosos. “Temos gente politicamente da direita que vem aqui comprar, mas que tem valores universais, como a agroecologia”, relata Pilati.

Grande parte da produção é destinada às feiras ecológicas da capital / Foto: Mariana Alves.

Em contraponto, ações recentes do governo Bolsonaro representam uma ameaça à luta travada pela agroecologia. “Aqui no Brasil, o veneno que causa morte se chama ‘defensivo’, é como se fosse um assassino chamado ‘beato’”, diz Pinheiro sobre os 169 novos agrotóxicos liberados pelo Ministério da Agricultura entre 1º de janeiro e 14 de maio deste ano.

Permanência ameaçada

Apesar da inovação e dos grandes níveis de produção agroecológica, as dificuldades de permanência das famílias no campo são muitas após a luta pela terra ter sido concluída. Além dos confrontos com grandes proprietários de terra, os agricultores precisam de renda para permanecer no campo, e para isso a sociedade precisaria incluir os produtos oriundos das terras da Reforma Agrária em seu dia a dia. “A sociedade hoje paga 20% a mais pelo produto orgânico, mas esse custo é um pagamento da sociedade para que os agricultores permaneçam no campo”, diz Cadore.

Dona Doroti Carpes vive da venda de seus queijos, que possuem fama na região / Foto: Mariana Alves.

O município de Nova Santa Rita, a 28 quilômetros de Porto Alegre, possui quatro assentamentos do MST e também é sede da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan), responsável pelos processos finais do arroz orgânico. De acordo com a prefeita Margarete Simon Ferretti (PT), a permanência dos camponeses e camponesas no local representa uma constante no crescimento da economia local, já que as práticas sustentáveis se tornaram inerentes à cultura da cidade. “Acredito que seja uma cadeia de processos que envolve o comércio, a sustentabilidade e as famílias produzindo um alimento de qualidade”, diz.

Tudo isso está posto em jogo pela ameaça de implantação de uma mina de carvão na região de Eldorado do Sul, cidade de pouco mais de 35 mil habitantes e a 20 quilômetros da capital. A Mina Guaíba é um projeto desenvolvido pela Copelmi Mineração, com previsão de operação de 30 anos a partir de 2022. Para que a mina seja implantada, cerca de 70 famílias terão de ser realocadas para outras áreas. Os executivos da Copelmi garantem que o empreendimento gerará empregos e que “os benefícios socioeconômicos do projeto da Mina Guaíba devem […] ter a sua viabilidade ambiental atestada, garantindo-se, portanto, que o meio ambiente será respeitado”, como diz o texto institucional do website da empresa.

Além de inviabilizar totalmente a permanência dos camponeses, o projeto compromete a qualidade do solo, da água e do ar nos arredores da área, que fica na margem do Rio Jacuí, perto de parques estaduais e aldeias indígenas. Adeles Bordin, moradora do assentamento Apolônio de Carvalho, em Eldorado do Sul, salienta que a implantação da mina afetaria diretamente a vida dos moradores da região metropolitana e que a participação da população nas audiências públicas acerca do projeto é fundamental.

Assentados protestam contra implantação da Mina Guaíba / Foto: Mariana Alves

Notoriedade mundial

Atualmente, no Rio Grande do Sul, cerca de 500 famílias produzem orgânicos dentro de assentamentos da Reforma Agrária, 363 delas estão envolvidas na produção do arroz orgânico. De acordo com o Irga, o MST possui 3.433 hectares do produto em 15 assentamentos, que na safra 2018/2019 geraram 16 mil toneladas de grãos. Esses números levaram o estado à posição de maior produtor de arroz orgânico da América Latina.

O arroz é comercializado através da marca Terra Livre e é ensacado na própria Coopan / Foto: Mariana Alves

“Hoje a produção orgânica é um carro chefe nosso, em especial o arroz, que é a maior produção aqui no município”, relata Marli Castro, secretário da Agricultura de Nova Santa Rita. Os assentados encontram facilidade na produção do arroz na região por ser muito úmida e estar perto da Grande Porto Alegre, simplificando a logística comercial. As cooperativas possuem agroindústria própria para armazenamento, secagem e embalagem do produto. A Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap) detém a marca Terra Livre e coordena os processos produtivos, industriais e comerciais. O produto final já embalado é vendido em feiras e em lojas de produtos ecológicos, como a Loja da Reforma Agrária.

Municípios produtores de arroz orgânico no Rio Grande do Sul:

  • Charqueadas;
  • Capela de Santana;
  • Eldorado do Sul;
  • São Jerônimo;
  • Canguçu;
  • Manoel Viana;
  • Tapes;
  • Arambaré;
  • Nova Santa Rita;
  • Viamão;
  • Capivari do Sul;
  • Guaíba;
  • Santa Margarida do Sul.

--

--