Foto: Freepik

Família

Pais melhores

Uma criança é um ser humano diferente dos seus progenitores em busca de ferramentas próprias para estar no mundo. Mães e pais têm se esforçado na construção de uma nova parentalidade tentando compreender ao longo desse processo como respeitar os filhos, a si próprios e os valores que desejam deixar como legado

Fabiana Sasi
Palavras Cruzadas
Published in
8 min readJul 10, 2019

--

Entre as diversas atribuições das suas rotinas, um ponto em comum entre muitas mães e pais contemporâneos é a disposição para refletir sobre qual é a sua função parental. Eles buscam instrução com independência em espaços não convencionais (como blogs, redes sociais de especialistas, grupos de pais, revistas, entre outros) ou em uma educação mais formal, através de cursos, palestras e livros especializados. A expectativa é ser o melhor possível dentro das condições que possuem e, para isso, não hesitam em revisar suas práticas.

O excesso de critério na criação dos filhos e o sentimento de ser responsável por tudo que lhes ocorrer pode gerar a fantasia de que é possível ter controle e escapar de situações complexas inevitáveis durante a experiência de viver. Como controlar a vida é uma tarefa utópica, esses pais têm repensado a maneira de enfrentar os acontecimentos de cada fase no desenvolvimento dos filhos e vêem nisso uma fonte de aprendizado.

DE VOLTA PARA ESCOLA

No final de 2016, as discussões de um grupo de Whatsapp que reunia mães estavam centradas no crescimento da violência urbana em Porto Alegre. Uma da participantes, a administradora Alua Kopstein, conversou com o chefe de segurança da empresa onde trabalhava para pedir ajuda na tentativa de resolver o problema pontual. Alua acabou organizando de forma espontânea no salão de festas do seu prédio uma palestra com foco em segurança para mães com filhos pequenos. O encontro reuniu 60 mulheres, enchendo o espaço e a cabeça de Alua de ideias. Antes de terminar o evento, ela se juntou num cantinho do salão com uma participante especial, sua amiga desde os tempos de colégio, a psicóloga Marina Sirotsky. Ambas estavam surpresas e perceberam que aquele encontro sinalizava o desejo genuíno daquelas pessoas em saber como agir da melhor forma com seus filhos. Dias depois, com as ideias ainda fervilhando, elas se encontraram na praia com seus filhos. Entre as brincadeiras das crianças, resolveram ali mesmo esboçar um projeto, pegando emprestado folhas de desenho, giz de cera e canetinhas coloridas. A dupla via nascer a Escola de Pais (EDP).

Desenhando um negócio | Foto: Alua Kopstein — Arquivo Pessoal

Para além do instinto e para mudar o mundo

“A gente acredita que pais melhores geram filhos melhores e consequentemente um mundo melhor.” Marina Sirotsky

As amigas possuem nos currículos profissionais especializações, cursos de extensão, MBAs e mestrado. Com a experiência da maternidade ainda em fase inicial, elas começaram a achar que um empenho semelhante deveria ser empregado no aprendizado formal para a criação de seus filhos. A vontade de também ajudar outros pais a repensarem seus papeis foi ajustada a um modelo de negócio que apresenta conteúdos de especialistas em ciclos de palestras. Em 2017, o Instituto Ling abraçou a ideia e, nos últimos dois anos, tem a Escola de Pais como o evento de maior número de público do centro cultural.

Em 2019, o projeto realiza sua terceira edição, e apesar dos temas ainda serem bastante ligados a crianças pequenas, a sequência de números — 018 — foi agregada ao nome da instituição Escola de Pais. Os algarismos fazem referência à faixa etária de zero a 18 anos que o evento pretende atender ao longo dos ciclos de palestras.

Com filhos de faixa etária entre zero e 5 anos, as curadoras lembram que a escolha dos temas era realizada a partir de questões muito particulares. “A gente tinha segundas intenções”, se diverte Alua. “Fomos colocando no papel os temas que a gente tinha interesse para a idade dos nossos filhos”, recorda Marina. Hoje as temáticas são escolhidas para além da ideia de despreparo como mães de primeira viagem, há leitura constante de publicações de referência nos assuntos, seleção de autores e profissionais relevantes e uma troca permanente com escolas de educação infantil e gestores do Ling em parceria com a Casa do Saber (SP). O objetivo é ter conteúdos com credibilidade e que, apesar de densos, possam ser abordados com leveza tornando-os acessíveis a diversos públicos. A demanda é grande. Nessa terceira edição o ciclo de oito palestras custou entre R$816 e R$1.156, dependendo dos descontos, e teve seus ingressos esgotados em maio, antes mesmo de acontecer o primeiro encontro.

Durante 12 anos, Alua dirigiu os projetos sociais e de voluntariado numa multinacional brasileira. Marina é fundadora do Voluntárias pela Vida, um grupo de mulheres que busca arrecadar recursos para os projetos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Essa trajetória ligada ao desenvolvimento de ações sociais fez com que elas pensassem numa maneira de não restringir o conhecimento gerado pela EDP. “Porque ser pai e mãe é independente de classe social”, defende Marina.

Desde o início, as palestras foram registradas em vídeo no intuito de que o alcance fosse maior do que o público com possibilidade de acesso ao Ling. Um canal no Youtube e páginas em redes sociais foram criados para lançar pílulas das palestras e vídeos com especialistas dando dicas de temas da atualidade. Uma plataforma online foi montada com os conteúdos dos 18 encontros realizados entre 2017 e 2018. Parcerias com empresas privadas estão sendo realizadas para tornar economicamente viável o acesso gratuito. Cada acesso que uma organização adquirir para uso de seu público interno irá gerar acesso gratuito para um membro de uma entidade social parceira.

“Quem são os principais interlocutores da infância? Sãos os pais, as pessoas que têm maior impacto na vida dos seus filhos. Se a gente quiser ter um mundo melhor, a gente tem que começar na infância.” Alua Kopstein

Em defesa de uma causa: educação plural, livre e transformadora

Aline Kerber carrega no ventre uma vida que cresce em paralelo à Associação de Mães e Pais pela Democracia (AMPD). A socióloga e presidenta da entidade está grávida de seis meses de Theo e vê a renovação familiar coincidir com a renovação de seus ideais por uma sociedade onde a educação possa acontecer de maneira livre a fim de garantir uma democracia plena.

O movimento surgiu após o resultado das últimas eleições presidenciais no país. Em 29 de outubro de 2018, alunos de um tradicional colégio particular de Porto Alegre vestiram-se de preto durante o intervalo e rumaram ao pátio numa manifestação pacífica a favor de grupos que eram fortemente rechaçados em declarações do candidato eleito. Num processo eleitoral permeado por discurso de ódio e intolerância e marcado por rompimentos de relações familiares, aqueles alunos fizeram um movimento inverso ao aproximar seus pais de questões que para eles eram de extrema importância: como ficarão mulheres, indígenas, negros e a população LGBT a partir de agora? A ação dos estudantes foi espontânea e não dimensionou a repercussão que teria.

No dia seguinte, a polarização da sociedade foi reproduzida no pátio quando alunos entusiastas do presidente eleito também tiveram liberação da direção da escola para manifestarem-se. Com as cores verde e amarelo presentes nas roupas e bandeiras, o segundo manifesto era uma comemoração à vitória nas urnas.

Muitos pais não sabiam do envolvimento dos filhos, e a descoberta se deu quando seus rostos e nomes começaram a ser disseminados de maneira ilegal e ofensiva em jornais, blogs e redes sociais de pessoas contrárias as preocupações manifestadas pelos alunos do protesto inicial. Aqueles manifestos haviam ultrapassado os muros do colégio. Mais do que tomar atitudes que protegessem a integridade física e psicológica dos seus filhos, os pais dos alunos do protesto inicial se sentiram convocados a participar da construção de um movimento de respeito ao próximo aliado aos valores democráticos.

De mãos dadas

Realizada menos de uma semana após as manifestações, a primeira reunião do movimento mobilizou cerca de 200 mães e pais. Aline conta que não foram poucos os que declaravam que foram levados pelas mãos de seus filhos. “Não estou acompanhando muito esse debate”, foi uma das frases que Aline diz ter ouvido nesse processo de despertar para as questões democráticas que, segundo ela, é a força do movimento.

Com os partidos políticos em descrédito, a socióloga acredita que as pessoas foram encontrando na AMPD uma identidade e um espaço para fazer uma luta pública e política através da área da educação. O grupo é suprapartidário, trabalha com tensões politicas, mas 90% dos membros não são ligados a nenhum partido político. “Prezamos o respeito a todas as formas de expressão e ideologias, desde que identificadas com valores democráticos, sem a agressão moral a minorias ou a violação de direitos humanos e das regras institucionais”, esclarece a presidenta.

Cursos de extensão, debates, atividades culturais, como festivais de música e cafés democráticos, buscam esclarecer as diversas pautas que afetam a educação. Os encontros são direcionados a educadores e pais, e as ações se ampliam na medida que o movimento cresce. A AMPD possui ainda forte atuação na Assembleia Legislativa do Estado, participa do Fórum Contra a Intolerância, do Ministério Público Federal, das comissões contra o Escola Sem Partido e das frentes parlamentares da Câmara de Vereadores de Porto Alegre contra a violência e em defesa da liberdade de expressão nas escolas.

Em defesa da diversidade com amor | Foto: Divulgação AMPD

A desacomodação iniciada pela juventude de um colégio já soma mais de cinco mil integrantes oriundos de 60 escolas públicas e privadas de Porto Alegre e interior do estado. Os interessados precisam ser tutores de crianças ou de adolescentes em idade escolar que estejam matriculadas, podendo ser desde a pré-escola até o ensino superior. Não há prospecção de novos membros e quem costuma buscar a associação é porque já conhece alguém que participa ou porque acompanha as redes sociais da AMPD. São pais e mães buscando descobrir em grupo o como se envolver na busca de melhorias sociais através da educação de seus filhos .

“Um revés que se tornou positivo, serve de autocuidado, gerou encontro, fortalecimento, luta, solidariedade, coesão e que busca reciprocidade ética com os filhos e com a comunidade escolar.” Aline Prestes

As relações parentais são feitas de pessoas únicas e mesmo num grupo de pais cheio de intenções semelhantes não há homogeneidade. Não há fórmulas nem escolhas absolutas tampouco infalíveis. Entender como lidar e ensinar empaticamente a complexidade do mundo é fruto de uma construção de vínculos quase sempre difícil. Demanda tempo, dedicação e paciência. É por vezes angustiante, pois não deixa de ser uma aposta. Não há garantias de sucesso do resultado que cada família deseja alcançar e nem se esse ideal será compatível com o futuro.

A solução possível para esses pais tem sido uma educação cheia de pessoalidade a partir de valores humanos, mas que ao mesmo tempo possa ser uma relação libertadora impulsionando os filhos a construírem uma maneira própria de estarem no mundo.

--

--

Fabiana Sasi
Palavras Cruzadas

Mulher, negra, nordestina, mãe, companheira, filha, irmã, amiga, cozinheira, comunicóloga, editora, artesã, produtora… muitas outras, mas, sempre aprendiz