Expressão urbana

Tinta que dá voz

Por trás das pixações, existem pessoas com algo a dizer

Bettina Gehm
Palavras Cruzadas

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Cores e formas da pixação integram o cenário de uma rotina na cidade | Foto: Bettina Gehm

As vigas e colunas de qualquer edifício são linhas de um caderno em tamanho gigante para a caligrafia urbana. Pixo é transgressão, a começar pela ortografia usada por quem o vive: X, e não CH. É infração ao Artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais; mesmo assim, e talvez justamente por isso, a tinta não deixa de ser espalhada no concreto, na madeira, no aço. É parte da cidade: “De dia tu passa num lugar, e no outro dia tu passa no mesmo lugar e tem uma coisa ali que te chama atenção, interage contigo”, descreve Fábio*. “Os caras olham ‘nossa, como que ele fez aquilo ali, naquela altura, usou escada?’ Eles tentam imaginar como tu fez uma pixação lá em cima”.

Aos 32 anos, Fábio é o rosto por trás da máscara que, sorrateiramente, desenha o contorno da Gata Mescla nos muros de Novo Hamburgo e de outras cidades. A silhueta, inspirada num animal de estimação, aparece com balões de fala. “Por mais que ninguém te dê bom dia no dia, a Gata Mescla tu vai passar na rua e ela vai te dar.” Nem sempre foi assim: a atividade nas ruas começou em 2002, como integrante dos Noias. “Naquele tempo era pura pixação.” O propósito? “Status, fama, sei lá. Aparecer.” Fábio não categoriza seu trabalho atual: “Não sei se é pixação, se é graffiti. É um símbolo que eu faço, e tento me comunicar com as pessoas que passam e olham pra aquilo ali”.

Gata Mescla frequenta locais abandonados | Foto: Bettina Gehm

Os muros e paredes são um palco vertical para artistas da margem. “A pixação, ela veio pra te dar o status que tu não teve”, alega Carol Sustos*. Tudo o que fica abaixo do céu e acima do asfalto pode servir de superfície para as letras do pixo, muitas vezes indecifráveis para quem passa, vê e reprova; o reconhecimento vale entre quem faz. O jovem de 18 anos que assina Bastar* resume: “É isso que eu mais acho tri, na real. Ser conhecido pela cena aqui do pixo. E pela sociedade, bah, sei lá, não tô dando bola se curte ou não”. Seu nome nas ruas é inspirado em Ol’ Dirty Bastard, membro do grupo americano de hip hop Wu-Tang Clan.

Se pixar não fosse crime, Carol Sustos acha que, então, não o faria. “Quando é na parede, tem que ser ilegal”, diz. Em 2008, aos 24 anos, Carol estava entre um grupo de pessoas que invadiu e pixou um andar vazio do pavilhão da Bienal de São Paulo. “Foi uma coisa tipo vocês vão ter que nos engolir”, conta. Ela vê o episódio como um questionamento do porquê de a pixação não integrar o circuito das artes. “Não como a sociedade quer, dentro duma galeria”, ressalta. Mas sendo o que é, “transgredindo na rua”.

O merecimento para assinar uma exposição organizada, em sua opinião, depende de conquistas urbanas que custam dedicação e noites de sono. “Se tu tiver sofrido pra caramba, porque a pixação é sofrimento também, eu acho que é válido”, Carol declara. Exemplo desse merecimento, segundo ela, é ‘Cripta’ Djan Ivson, pixador paulista cuja arte, emoldurada, é reconhecida fora do Brasil. “Ele é um cara que tá articulado pra falar sobre pixação. Ele não vai ficar arregando pro bagulho comercial”, diz. Em 2012, Cripta Djan e mais dois pixadores participaram da Bienal de Berlim, onde foram convidados a dar um workshop de pixação. “Só que não existe workshop de pixação. Pixação é vandalismo, é rua”, ressalta Carol. “Os moleque se recusaram e escalaram uma igreja milenar, e pixaram todo o bagulho tombado pelo caralho a quatro”, conta.

Fábio afirma que a pixação brasileira chama atenção de estrangeiros. “Porque não existe isso fora do Braza”, diz. “Pixação é produto nacional, principalmente pixação de rolo.” No exterior, segundo ele, há predominância de outros estilos: bomb, graffiti, throwup. Para Carol, é pixação desde que feito em local não autorizado. Ela confirma: “Hoje em dia tem lugares lá na gringa que usando rolo, que usando letra reta. Mas é por influência do Brasil”.

Prédio abandonado e pixado em Novo Hamburgo foi cercado após reclamações de moradores vizinhos | Foto: Bettina Gehm

O que sente um pixador, no momento de sua ação? “É adrenalina. Bah, é tri. Ainda mais uma escalada, o cara subir lá em cima e deixar a marca”, diz Bastar. “Prazer”, resume Fábio. “A pixação é um refúgio”, afirma Carol Sustos. “Ela serve tanto pra quando tu tá feliz, tanto pra quando tu tá triste, ou com raiva, sei lá. Ela é uma válvula de escape.”

Se pixar é deixar uma marca, a frustração vem quando outro rolo de tinta passa por cima do registro. “O cara fica puto, né. Porque é uma noite apagada”, diz Carol. “É uma mão pra fazer o pixo”, explica Bastar. “Mas azar, né, é o corre.”

Gerações

“Eles não botam mensagem nenhuma, esses guris de hoje”, diz um personagem folclórico de Porto Alegre. Sérgio José Toniolo começou a pixar em 1982, ano em que faleceu Elis Regina, voz que desafiou o regime militar. “A gurizada botava Elis Vive. Porque a pixação mesmo, quando foi criada, eles usavam pra fazer protesto contra o governo.” Desde então, o homem conhecido como Rei do Pixo espalha também adesivos incitando o voto nulo. Toniolo considera seu maior feito a pixação no Palácio Piratini, em 1984, tendo previamente comunicado a imprensa e causado, naquele dia, a mobilização de 200 policiais.

Quando escrevia a última letra de seu nome, foi preso. “Mas só na hora”, ressalta. “Depois eles nem fizeram processo, porque ia ficar mais desmoralizante pra eles, porque eu marquei hora e consegui fazer. Eles demonstraram que não tinha segurança nenhuma o Palácio Piratini.” Aos 73 anos, declara: “Pixar, eu tenho preferência por Monumento aos Açorianos. Eles tão me processando por isso”. Mas como processar uma lenda? Nem todas as inscrições em nome de Toniolo são feitas pelo próprio, que exemplifica: “Uns dois anos atrás foi pego uns guris pela Guarda Municipal na Protásio Alves, eles tavam pixando Toniolo”.

Frame de vídeo publicado em 2015 no canal de Toniolo no Youtube. Na descrição, o pixador coloca o feito como uma “afronta para as autoridades”, já que estaria pixando o Monumento pela “milésima vez” | Créditos: Leandro Alves

Realidade

O patrimônio público não é alvo de Carol Sustos, quando munida de tinta. “É uma parada que dá cadeia”, diz ela, que ficou detida por 54 dias após o ataque a Bienal. Quanto à propriedade privada, faz distinção: “O barraquinho da dona Maria, que tá bem pintadinho, eu acho que deve ficar do jeito que ela fez. Mas eu acho que a casa do playboy, tu pode pixar quinhentas mil vezes”, afirma.

Detenção de três meses a um ano é a pena prevista pelo Artigo 65 para os pixadores. “A gente espera umas duas, três horas no máximo, assina o BO e vai embora”, contrapõe Bastar. Com ele, isso aconteceu só uma vez; em outras duas ocasiões, diz ter sido agredido. “Foi bem leve, da primeira vez. Mas daí, na segunda vez, foi eu e o Drope [apelido de outro pixador], tinha acabado de comprar uma lata”. O rapaz conta que ele e o amigo foram flagrados por um morador, que chamou a polícia. “Logo eles chegaram, abordaram a gente, e quebraram a gente. Acho que foi o dia que eu mais apanhei. Foi foda.”

“Se é pra fazer um pixo, eu curto fazer no alto”, declara Bastar | Foto: Bettina Gehm

Fábio diz ter experimentado um tratamento diferente, numa ocasião em que desenhava a Gata Mescla. “Não tinha ninguém vendo, então os polícia foram de boa, só mandaram eu caminhar”, narra. Ele conta de outra situação, em que foi riscar a parede de uma casa já tomada pelo pixo. Do outro lado da rua, um cidadão observava. “Vi que o cara saiu do carro e ele ficou brabo. Ele não entendeu, eu tava bem vestido. Como se isso fosse coisa de marginal, só marginal fazer.”

A pixação tem classe social, na visão de Bastar. “Pode reparar que a maioria vai ser da classe mais baixa. É difícil um playboy querer pixar, que sabe que vai se incomodar”, afirma, e acredita que a revolta social é semente dessa realidade: “Por causa que onde eu cresci, eu podia tá envolvido com coisa pior”. O jovem menciona que trabalha. “O cara precisa ter um trampo pra se manter”, diz. Por sua vez, Carol Sustos enxerga indignação com a desigualdade também na classe alta. “A revolta não é só do povo pobre”, afirma. “A pixação é uma parada periférica, mas eu conheço muita gente privilegiada que tá no meio também.”

Pixador(a)

Carol viveu a pixação em épocas e locais diferentes: São Paulo, com o primeiro contato em 1998, e Porto Alegre, a partir de 2010. Sustos é denominada a turma de pixadores da capital paulista da qual ela faz parte e que compõe seu apelido. Aos 34 anos, Carol é testemunha de que, se os pés que escalam prédios vêm da periferia ou do bairro nobre, também variam entre masculinos e femininos. “Em São Paulo, o pessoal te dá liberdade pra entrar no movimento por ser mulher, mas sempre tem um interesse por trás”, diz a pixadora. “Eu tenho amigos que a pixação me deu. Amigos de verdade, irmãos. Mas eu fiz muito inimigo também, por não aceitar o tipo de tratamento que eles tinham com as garotas. Chamar pra dar rolê, querer botar tinta, mas sempre tem um foco, que é a mina.”

Carol procura manter seu “rolê atual”, mesmo com pouca frequência | Foto: Arquivo pessoal / divulgação

Essa realidade é diferente, para Carol, em Porto Alegre. “Quando cheguei aqui, eu não tinha receio de sair no rolê com eles. Eu sentia que eles tavam felizes com a minha presença, que eles queriam aprender com o que eu tinha trago de lá”, diz. Ela reconhece que as coisas podem ter mudado em São Paulo. “Com essa onda do feminismo e tal, eu acredito que muito cara tenha se ligado. Mas eu acho que o cara que é um otário, ele sempre vai ser um otário, sabe?”

Mãe de duas meninas, Carol não tem mais a pixação como prioridade. “Não que eu não queira, porque ela sempre vai ser uma das minhas paixões”, diz. Quanto às filhas se tornarem futuras pixadoras, afirma: “Desde que elas não corram pro lado do legalizado, do comercial, não tem problema nenhum”.

A cena do pixo é um ato sem tempo marcado entre as cortinas do palco vertical. Sobre o futuro, Bastar considera: “Essa pegada que eu tô hoje em dia eu sei que eu vou parar, vou ficar mais na manha. Mas vou sempre riscando”.

*Nomes utilizados a pedido dos entrevistados.

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