Pandemia à Moda da Casa

O que comemos durante a maior crise sanitária da nossa época.

pandemiaamodadacasa
27 min readDec 14, 2020

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E
m 2020, o mundo enfrentou uma guerra diferente. Sem tanques e bombas, mas ainda assim política, caótica e devastadora. O vírus Sars-Cov-2 nos fez conviver com medos que ultrapassavam a doença, como o desemprego, conflitos ideológicos, negacionismo científico, e um temor em particular que assombra a humanidade a cada nova crise: a fome. Como sobrevivemos? Ao que nos ligamos afetivamente para conseguir continuar? O que comemos durante a maior crise sanitária da nossa época? Para responder estas e outras perguntas, essa reportagem acompanhou os desdobramentos da pandemia de Covid-19 no estado de Santa Catarina, Brasil, durante quatro meses de apuração. A busca se concentrou em um espaço que reflete diretamente os efeitos de crises econômicas e sociais, na mesa das famílias.

Cozinhar é o que nos torna humanos. A frase foi escrita pelo jornalista Michael Pollan em seu livro Cozinhar: uma história natural da transformação de 2013. Para o autor, “cozinhar é o que nos torna humanos, tanto cultural como biologicamente: ao passar a ingerir alimentos cozidos, o Homo erectus mudou o destino da nossa espécie.” Então, o que acontece com nossa humanidade quando precisamos adaptar a alimentação em períodos extremos? Diversas receitas tradicionais do Leste Europeu, por exemplo, levam apenas trigo e batatas, pois esses eram os únicos ingredientes que resistiam em tempos de guerra. O macarrão instantâneo surgiu desta mesma adversidade e hoje é encontrado nas prateleiras de qualquer mercadinho.

O vírus Sars-Cov-2 começou a ser noticiado ainda em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, China, despertando o alerta para a Organização Mundial da Saúde (OMS). Um mês depois, em janeiro de 2020, Wuhan tornou-se o primeiro epicentro da pandemia, e, no dia 21, o vírus já havia chegado aos Estados Unidos. Fronteiras foram fechadas, alguns países seguiram as recomendações da OMS e decretaram quarentena e lockdown. Outros governos, no entanto, alegaram que não podiam parar. Foi o caso da Itália, que em 21 de fevereiro confirmou a primeira morte por Covid-19, quando o governo declarou que as notícias sobre a pandemia eram “exageradas”. Um mês depois o país ultrapassou 7 mil mortes, segundo o Portal G1.

Diante das notícias do avanço do vírus na Europa, os brasileiros se preocuparam, cobraram atitudes, começaram a confeccionar máscaras, enquanto o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ainda falava em “gripezinha”. Com a chegada do vírus ao Brasil a declaração mudou para “vão morrer alguns”. Sem informações claras o suficiente para saber como lidar com a nova realidade distópica, além do disparo em massa de fake news a respeito do vírus e teorias da conspiração, o brasileiro fez o que aprendera nos tempos de instabilidade da inflação: correu para o supermercado.

Segundo a ACATS — Associação Catarinense de Supermercados, entre o período de 16 a 23 de março, houve um aumento de 50% nas vendas de itens considerados essenciais, como papel higiênico, farinha, macarrão e legumes que duram mais tempo na geladeira. A ACATS observou que os consumidores deixaram de comprar por impulso, principalmente guloseimas e itens de padaria. Também abriram mão de alimentos mais frescos, como os vegetais folhosos (alface, rúcula), escolhendo batatas, cenouras, que demoram para estragar. Diversos consumidores mudaram também o hábito de buscar o pão quentinho para o café diariamente, passando a fazer o próprio pão em casa. Só em maio, “como fazer pão?” bateu recorde histórico de buscas no Google.

Pão feito por Vilma, está em cima do fogão ao lado de um bule.
Vilma faz essa receita de pão toda semana, leva farinha integral, aveia, chia e linhaça. (Foto cedida pela entrevistada)

Diferentemente dos novos padeiros do lar, a costureira Vilma Regina de Sousa (47), de Guaramirim, sempre fez pão em casa e usou o isolamento social para aprimorar novas receitas. Antes, ela fazia o pão de trigo comum, mas passou a fazer tentativas de pão integral, com aveia em flocos e linhaça. A receita deu tão certo que até mesmo o filho Eduardo, de 15 anos, ficou interessado em aprender.

A atendente de farmácia Luciana de Oliveira (47), de Caçador, também sempre teve o costume de fazer pão em casa, pelo menos uma vez por semana. O maior desafio, na verdade, foi conciliar o tempo de cozinhar durante a pandemia, com as crianças em casa por conta da interrupção das aulas, e ainda ter que trabalhar fora.

Quem se aventurou na padaria doméstica foi Tânia Muller (56), de Jaraguá do Sul. Nos primeiros sinais indicando o início do isolamento social em sua cidade, a cabeleireira comprou tudo que precisava para fazer pão em casa e não sair mais. Tânia mora com a mãe idosa, que faz parte do grupo de risco. Não sair muitas vezes para ir ao mercado ou padaria foi a maneira que ela encontrou para não pegar o vírus.

Os padeiros da pandemia foram só uma das diversas tendências envolvendo a internet durante o isolamento social. A popularização das compras de supermercado por aplicativos de delivery e até mesmo por mensagens, quando o comércio é menor e tem mais proximidade com os clientes, cresceu bastante com as pessoas em casa. Segundo a ACATS, as compras não presenciais aumentaram em 110%, impactando positivamente 68% das empresas varejistas, mesmo aquelas que se mantiveram abertas durante todo o período da crise sanitária. Para o presidente da ACATS, Paulo Cesar Lopes, o supermercado “virtual” veio para ficar: “As compras pelo meio digital estão no radar das empresas há vários anos, só que a ocorrência da pandemia acelerou os processos. Acredito que seja um caminho sem volta, porém, de forma alguma substituirá o modelo presencial. Os formatos irão coexistir e se complementar”.

O mercado por delivery foi mais uma das novas experiências na vida de Riolanda Conceição Fachini Cavilha (60) durante a pandemia. A corretora de seguros deixou a casa em Rio do Sul aos cuidados do marido, e foi para São Paulo vivenciar o papel de avó. Com a chegada de Beatriz, Riolanda dividiu os cuidados da filha e da neta com o genro, o que para ela não é nenhum trabalho. Com um recém nascido em casa, ir até um ambiente de grande movimentação como o supermercado apresenta mais riscos além do Covid-19, já que o bebê ainda não tomou as primeiras vacinas. A solução foi baixar os mais diversos aplicativos de entrega, e fazer as compras pelo celular. Riolanda conta que foi até divertido, principalmente pela variedade de produtos disponíveis em uma cidade maior, bem diferente do que ela está acostumada em Rio do Sul.

ARROZ A PREÇO DE PETRÓLEO

A forma de chegar ao o alimento pode até estar mais prática e acessível, mas os alimentos em si, não. Apesar de instituições como a ACATS, por exemplo, tentarem negociar os melhores preços com fornecedores para que o custo dos alimentos se mantivesse estável durante a pandemia, em agosto, arroz e feijão viraram ‘petróleo’. Uma das principais causas apontadas para o aumento é a desvalorização do Real, já que vale mais a pena para o produtor exportar e receber em dólar do que vender seu produto no mercado interno em plena recessão. Em 8 meses, o preço do arroz subiu quase 20%: um pacote de 5kg que custava aproximadamente R$ 14,00 podia ser encontrado por até R$ 40,00 entre os meses de setembro e outubro. Seu complemento oficial, o feijão, sofreu aumento de 30%, prejudicado também por uma safra ruim.

Vilma Regina de Sousa ainda não havia sentido o aumento diretamente porque um saco de 5kg dura dois meses para ela e o filho, mas ficou preocupada com as compras futuras. É o mesmo caso de Tânia Muller, que mora somente com a mãe, mas ficou apreensiva com a disparada dos preços. Francine notou o aumento, mas fez pesquisas e não deixou de comprar nada. Morando com o namorado e ambos trabalhando em regime presencial, o quilo acaba rendendo. Riolanda não sentiu o aumento dos alimentos, pois não estava indo ao mercado. Apenas recebeu piadas no Whatsapp sobre a situação.

O preço do arroz rendeu mesmo piadas, inclusive relacionadas ao fato do presidente Jair Bolsonaro tratar da situação com sarcasmo. Quando questionado sobre o preço do produto por um de seus apoiadores, no dia 25 de outubro, o presidente respondeu: “Quer que eu baixe na canetada? Você quer que eu tabele? Se você quer que eu tabele, eu tabelo. Mas vai comprar lá na Venezuela”.

Além do arroz, outros alimentos essenciais para a cesta básica tiveram aumentos que afetam diretamente as famílias com menor renda. É o caso do tomate, cebola, carnes, óleo de soja e o leite, como mostra o IPCA — Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo.

“Alimentação é mais do que ingestão de nutrientes” diz o Guia Alimentar Para a População Brasileira. (Foto de acervo da repórter)

QUEM TEM MEDO DE COMIDA IN NATURA?

No mesmo período em que arroz e feijão se tornaram artigos de luxo, o governo federal resolveu mostrar aos brasileiros que esses alimentos não são tão essenciais assim. Não bastasse a falta de acesso aos alimentos por conta do preço, o Ministério da Saúde, em meio a uma pandemia que já matara mais de 145 mil pessoas, encontrou outra prioridade a pedido do Ministério da Agricultura, no mês de setembro. A vítima da vez foi o Guia Alimentar Para a População Brasileira, uma conquista da população em 2014, criado a partir da revisão de versões anteriores do Guia Alimentar Para as Crianças e do Guia Alimentar Para a População em Geral. O novo Guia foi construído levando em consideração as diferenças socioeconômicas, sazonais e culturais do Brasil, incentivando uma alimentação natural, explicando os malefícios dos alimentos ultraprocessados e sugerindo um menor consumo e alimentos de origem animal pelo bem da saúde e do meio ambiente.

No documento enviado ao Ministério da Saúde, o Ministério da Agricultura afirma que ‘não há evidências científicas sobre danos alimentares causados por ultraprocessados’, e exige a retirada da recomendação sobre não consumir em excesso alimentos de origem animal. Classifica a medida como “preconceituosa” e ainda se refere ao Guia Alimentar como um dos “piores guias do mundo”. Ao contrário das inverdades divulgadas pelo Ministério da Agricultura, o Guia Alimentar Para a População Brasileira é considerado um dos melhores do mundo, principalmente levando em conta a relação entre alimentação e sustentabilidade. Ele serve de exemplo para Guias de diversos países.

Segundo a doutora em Nutrição e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições (NUPPRE) da UFSC, Ana Carolina Fernandes, o Guia Alimentar para a População Brasileira é referência principalmente por fazer as recomendações alimentares com base nos alimentos e não somente nos nutrientes. “Já se sabe hoje que uma alimentação saudável vai muito além do alimento ser fonte ou não, ela tem a ver com a base dessa fonte. Existem vários alimentos que são fonte de gordura, mas qual a qualidade dessa gordura?”.

Sobre a exclusão da definição de alimentos ultraprocessados, a pesquisadora enfatiza que a função do Guia é promover saúde e prevenir doenças. Para isso, ele se baseia em evidências científicas, que, se ignoradas por interesses econômicos e comerciais, revela o desrespeito ao compromisso do Guia com a saúde da população. “O Guia fala em alimentos in natura, minimamente processados. Então o que é muito processado, aqueles alimentos que você desmonta, pega o trigo, tira a farinha, tira o farelo, tira a fibra, depois mistura cada componente e faz um um produto alimentício, o Guia entende que não é mais um alimento”.

Além de explicar para a população de forma bastante didática essa diferença de processamentos de alimentos, o Guia deixou no passado o formato de pirâmide que classificava a qualidade dos alimentos de maneira equivocada. Hoje, o formato gráfico do Guia mostra sugestões de pratos saudáveis tipicamente brasileiros, desde o café da manhã até o jantar, considerando a regionalidade, a sazonalidade e a tradição de cada canto do Brasil. Outro ponto fundamental é o resgate do preparo do próprio alimento e a valorização do momento da refeição. “Ele fala da volta para a cozinha, de valorizar o que é preparado em casa, em família. Se come consciente, se come acompanhado, se tem uma relação saudável com a comida”.

Diante da retirada da recomendação de ingerir alimentos de origem animal com moderação, a pesquisadora reitera que o problema não está em comer carne, mas nas implicações que a falta de informações pode resultar. É o caso, por exemplo, de políticas públicas prejudiciais e ligadas diretamente a interesses econômicos de uma pecuária extensiva. “Produzir quantidade de carne em excesso resulta no meio ambiente desequilibrado. É um consumo excessivo de água, é uma das origens de queimadas.”

“A gente não está usando a terra
para plantar comida que a gente come.
A gente planta comida para a carne
que a gente vai comer”.

NÃO TEM ARROZ? QUE COMAM MACARRÃO

Com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares, realizada entre 2017 e 2018, Santa Catarina alcançou os melhores resultados sobre segurança alimentar do país inteiro. O estado vai na contramão dos dados nacionais divulgados pelo IBGE, em que foram apontados 10,3 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave. Entre os mais de 2,5 milhões de domicílios catarinenses apurados, 2,1 milhões estava em total segurança alimentar. Os casos de insegurança alimentar leve, moderada e grave somam 331,264 mil domicílios no estado.

De acordo com resolução do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, de 2010, a insegurança alimentar grave acontece quando, além da preocupação ou incerteza quanto ao acesso a alimentos no futuro, a qualidade dos alimentos é inadequada, resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade de alimentos. Há também redução quantitativa de alimentos entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores, incluindo as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio.

Durante a pandemia, muitas famílias foram afetadas pelos aumentos de preços, gerando essa preocupação e incerteza que aponta para algum nível de insegurança alimentar. Quando o preço do arroz disparou, alguns consumidores deixaram de comprar outros alimentos não tão necessários, considerados supérfluos, para priorizar o cereal. Essa não é uma opção para todos; aqueles com menor renda foram orientados a substituir arroz por macarrão. Em 2015 a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) publicou um estudo mostrando que “quase 95% dos brasileiros consomem arroz e mais da metade o fazem no mínimo uma vez por dia”.

Um prato de arroz com feijão preto, farofa de pinhão e ovo frito.
Arroz e feijão correspondem a quase um quarto da alimentação dos brasileiros, segundo levantamento do POF 2008–2009. (Foto de acervo da repórter)

Para a pesquisadora Ana Carolina, a sugestão de substituição preocupa. “Chega a soar absurdo porque não leva em consideração a nossa cultura, significa tirar a base da alimentação do brasileiro, culturalmente, nutricionalmente”. O arroz e o feijão são considerados a combinação mais eficiente entre um cereal e uma leguminosa, juntos fornecem aminoácidos fundamentais para nossa saúde.

SANGUE, SUOR E BOLETOS

Com o desemprego batendo recorde durante o período de isolamento, cerca de 13,7 milhões de brasileiros não sabem como vão continuar colocando comida no prato. Os números já não eram bons antes da pandemia. A situação se agravou no mercado de trabalho informal: cerca de 38 milhões de trabalhadores, conforme resultados da PNAD Contínua, principalmente no caso das vendedoras e vendedores ambulantes que ficaram parados. Da mesma forma, as grandes empresas sentiram o impacto das medidas restritivas e de isolamento social decretadas durante o período. Para cortar gastos, cerca de 530 mil pessoas foram demitidas só em Santa Catarina, como aponta pesquisa realizada pelo Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), Fiesc (Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina) e Fecomércio (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo).

Entre esses catarinenses está Cristina Oliveira, de 41 anos, mestra em artes visuais, diagramadora no jornal Notícias do Dia desde 2014. Há cinco meses, quando o jornal começou a cortar custos devido à pandemia, Cristina sabia que precisava partir para um plano B. O plano, na verdade, já existia: cozinhar. Pensando nos elogios dos amigos a sua comida e o quanto se divertia cozinhando, Cristina fez o que diz o ditado: juntou a fome com a vontade de comer e criou o Tina Congelados Caseiros em menos de duas semanas após sua demissão.

Todo o negócio é gerido por Cristina, desde a ida ao mercado, a preparação das marmitas na cozinha do seu apartamento, até a divulgação nas redes sociais e contato com os clientes. “Criei minha logomarca, os amigos botaram pilha e quando vi virou um negócio”. Os amigos e vizinhos do condomínio foram os primeiros clientes do Tina Congelados Caseiros. A partir deles e das indicações, os pedidos começaram a aumentar. “Hoje eu já penso as coisas de outra forma, fiz bastante estudo. Sigo chefes que falam que começaram pelo amor pela cozinha, mas tem que pensar em empreender. É outro pensamento, não é só gostar de cozinhar, é muito difícil.” Cozinhar virou profissão, mas Cristina não fazia ideia de que a relação com a comida mudaria tanto por conta do negócio.

Uma fileira de marmitas congeladas, dentro delas há frango ao curry com cuscuz de couve-flor.
Um dos pratos de maior sucesso do Tina Congelados Caseiros é o frango ao curry com cuscuz de couve-flor. (Reprodução do instagram comercial)

Ela começou a cozinhar aos 16 anos quando decidiu tornar-se vegetariana. Como ainda morava com os pais, passou a fazer as próprias receitas. Com o passar dos anos, Cristina foi aprendendo pratos mais complexos e sofisticados, sem pretensão profissional, para receber os amigos em casa. “Eu sempre colocava fotos das receitas no meu instagram pessoal, e meus amigos pediam ‘faz isso pra mim, faz aquilo’, mas eu não sabia precificar e acabava não fazendo”.

Para fazer acontecer, precisou adquirir mais um freezer, deixou até mesmo de congelar sua própria comida para armazenar os pedidos. “A alimentação mudou, não tenho mais espaço. Faço minha comida de uma forma mais rápida ou como o que não for para as marmitas”. Cristina chega a cozinhar duas receitas por dia, fazendo tudo sozinha. Diariamente ela também faz novos testes de pratos solicitados pelos clientes, prova muita coisa até dar certo. “Depois que eu comecei a cozinhar como trabalho, enjoei um pouco de comida. É muita coisa pra provar. É engraçado, eu era mais empolgada pra cozinhar quando não tinha que cozinhar pra trabalhar”.

Além do preparo, Cristina também organiza as entregas feitas por motoboys até às 18h, todos os dias. Segundo a cozinheira, a maioria dos clientes são mulheres, mesmo quando as marmitas são para casais, só elas pedem. “A maioria dos clientes trabalhava fora e está em home office. É gente que comia em buffet antes da pandemia. Não tem tempo pra cozinhar, então pede logo marmita pra semana toda”. Segundo o Sebrae, os pedidos de comida em casa aumentaram em 76% só em abril. Mesmo com a retomada de alguns negócios presencialmente com o passar dos meses, a pandemia fez o mercado de alimentação se reinventar, levando os consumidores a comprar de quem está mais próximo, hábito que provavelmente vai se manter. Cristina pensa da mesma maneira, pois sabe que, enquanto não houver vacina, muitas empresas vão manter o home office. “Eles viram que sai mais barato, então as pessoas vão continuar comendo em casa. Pra muita gente sai mais barato comprar congelado. Além de poupar tempo, é mais saudável”.

As adaptações low carb de Cristina fazem sucesso, este é o risoto de pernil, feito com “arroz” de couve-flor. (Foto cedida pela entrevistada)

Sobre o futuro, Cristina até considera abrir um pequeno espaço, para poder dividir melhor as funções e não precisar usar a cozinha de casa. “É complicado de separar as coisas, tá tudo um pouco embolado: se a pessoa manda mensagem 22h eu to atendendo, final de semana também”, brinca a cozinheira. “Gastronomia é trabalho, gosto, tem que ser muito apaixonado. Eu tô feliz com minha escolha, mas é por aí, sangue, suor e boletos”.

PRA ‘BOTAR’ COMIDA NA MESA

Durante meses de isolamento, migrando de semanas mais restritivas até o “novo normal” ao qual boa parte da população aderiu, a pandemia se mostrou um indicativo socioeconômico ao escancarar as desigualdades sociais. Poder ficar em casa era um privilégio, mas escolher ficar em casa foi chamado de privação de liberdade. Enquanto milhares de pessoas das rendas mais baixas não puderam manter o isolamento social para trabalhar, outras milhares, com mais estabilidade econômica, escolheram lotar as praias. Enquanto milhares viram faltar comida no prato, cortando aqui e ali para manter o essencial, outras milhares cozinharam em casa pela primeira vez.

Em março, Riolanda decidiu se isolar em seu sítio no interior de Rio do Sul. Com ela estavam o marido, o filho mais novo e sua mãe. A corretora de seguros fechou seu negócio na região central e continuou trabalhando de casa, assim como o marido. A família fez uma última ida ao mercado antes de partir para o sítio, fizeram uma compra grande, o ‘rancho’ como se costuma dizer. Riolanda segue uma dieta, dessas bem restritivas, com bastante proteína, alguns cereais e oleaginosas que não se encontram em qualquer mercadinho de interior. As provisões da dieta foram acabando, e a nova organização familiar, com mais gente sob o mesmo teto, acabou mudando os hábitos alimentares da corretora, bastante a contragosto.

Na metade de setembro, Riolanda foi para São José do Campos, à 777 km de Rio do Sul aproximadamente. O motivo da viagem foi Beatriz, sua primeira neta que acabara de nascer. Ao se tornar avó, todas as atenções de Riolanda se voltaram para a neta, uma avó ‘coruja’ que dá banho, pega no colo a cada choro, fica atenta a cada sorriso, a cada feição engraçada. Mas os cuidados se estendem para sua filha, que além do pós parto, convive com restrições alimentares que podem afetar a qualidade do leite. Sendo assim, Riolanda tomou conta da cozinha, para ajudar o genro e a filha, apesar de não gostar tanto de cozinhar. Para ela, a comida favorita é aquela que não engorda, que é saudável, mas nem por isso deixa de fazer sua famosa maionese de domingo para acompanhar o churrasco, pois é muito requisitada.

Tanto em Rio do Sul como em São José dos Campos, Riolanda adaptou sua alimentação para comer o que a família estava comendo. Ela não aproveitou o isolamento para testar receitas novas ou cozinhar mais, seu objetivo era manter a dieta, apesar do pouco acesso aos alimentos indicados enquanto estava no sítio. Na casa da filha, foi muito mais fácil, Riolanda descobriu o mundo dos aplicativos de delivery, para pedir comida e para compras do mercado. Como Beatriz ainda não tinha idade suficiente para tomar as primeiras vacinas, sair para fazer as compras poderia trazer para dentro de casa outras doenças além do Covid. Com a ajuda da tecnologia e com a variedade de opções em uma cidade maior, aos poucos Riolanda conseguiu voltar aos hábitos alimentares que prefere seguir. Na opinião dela, deve ser muito mais fácil comer onde todos comem de tudo.

Francine Patricia Silva (34) está sempre trabalhando, dentro do horário comercial ou fora dele. É daquelas mulheres jovens, cosmopolitas e independentes que comprariam tempo se encontrassem nas prateleiras do mercado. Com pandemia, não parou de trabalhar. Quando algumas empresas de Joinville acataram o trabalho de casa, ela continuou trabalhando, e trabalhando mais, porque as funções acabaram se misturando para todo mundo. Fã de um docinho após as refeições, tenta cozinhar mais vezes por semana, seu namorado também, mas admite que pede bastante comida por aplicativo.

Com a volta do trabalho semipresencial, a designer de interiores voltou a almoçar com a mãe diariamente, pois moram perto. Assim, Francine garante ao menos uma refeição de “comida de verdade” por dia: arroz, feijão, salada. Sem horário muito certo para chegar em casa, muitas vezes opta por macarrão ou um lanche rápido. O especial fica para o final de semana, ou para as reuniões familiares, quando elas ainda podiam acontecer: a torta banoffe, uma combinação de banana, merengue e doce de leite.

O gosto por cozinhar veio da avó, e dela também veio a preferência por massas, lasanhas, nhoques. Antes do mundo virar o que virou, Fran recebia os amigos em casa com bastante frequência, seja com tábua de frios, vinhos ou comida mexicana para comer compartilhando e lambendo os dedos.

Tábua de frios e frutas: morangos, uvas, queijos, salame, chips de batata, amendoim, tomate cereja. Há uma vela acesa.
Uma lembrança dos tempos em que Francine recebia os amigos em casa. (Foto cedida pela entrevistada)

Camila Alves do Rosário (26) foi uma das vítimas do despreparo do país, do estado e de Rio do Sul no enfrentamento da pandemia. Teve pacote completo: a doença, o corte de salário e o abalo psicológico. Camila pegou Covid em março, quando tardiamente as medidas de isolamento começaram a ser discutidas, ninguém usava máscara e todo mundo corria para os supermercados. Como trabalha na loja de produtos esportivos da família e tem contato com muitas pessoas diariamente, não faz ideia de quando pegou, mas sabe que não é só uma ‘gripezinha’. Foram 15 dias de febre alta, nenhuma vontade de comer e dificuldade de respirar. Na verdade, ela descreve que era impossível respirar; era como ter um monte de tijolos no peito, e parecia que a qualquer momento ela não iria aguentar mais. Quando chegou na emergência, ninguém sabia muito bem o que fazer, ela não fez teste, pois não tinha, ganhou uma única máscara descartável para usar em casa e um remédio usado para tratar bronquite.

O que curou Camila foi esperar, repousar, e a confirmação para Covid só veio em maio, quando fez um teste de farmácia, daqueles que mostram se você já esteve doente. Além de enfrentar o vírus, Camila e sua família fecharam a loja seguindo as recomendações municipais, e, por isso, cortaram seus salários. Foi aí que a musicista precisou conviver com outro desconforto: não poder comer aquilo que sente vontade, o que conforta, para conseguir manter o essencial em casa.

Uma térmica com filtro passando café sobre a mesa da cozinha posicionada em frente a janela.
Registro de um raro momento em que Camila aproveita uma refeição em sua própria companhia. (Foto cedida pela entrevistada)

Camila sofre de doença celíaca, isto é, ela não pode consumir alimentos com glúten, com traços de glúten, armazenados próximos a glúten ou preparados nos mesmos equipamentos que preparam glúten. Até os 17 anos, ela sofria da doença sem saber. O diagnóstico ainda hoje é difícil e só depois do tratamento ela pôde redescobrir o prazer de comer. Antes disso, na hora de ir para a mesa, Camila já se sentia mal, pois sabia que ia sentir dor ao comer uma pizza ou um sanduíche com a família.

Depois de fazer as adaptações necessárias em sua alimentação, Camila começou a testar receitas e conhecer novos sabores, criou o hábito de cozinhar mais. Infelizmente, os alimentos sem glúten são mais caros. Não basta comprar o que está escrito no rótulo “sem glúten”, pois não pode conter nenhuma porcentagem de traço ou contaminação cruzada. Assim, para comprar castanhas e farinhas, Camila não pode comprar a granel, precisa comprar um pacote grande e fechado, essa é a opção mais cara. O mesmo para um pacote de biscoito, que pode chegar a custar R$30,00 ou 1 litro de leite de arroz, por R$ 20,00.

Com o corte do seu salário e, consequentemente, o corte desses pequenos confortos, Camila parou de sentir vontade de cozinhar.

A reabertura da loja e a retomada do trabalho melhoraram a questão financeira, mas Camila ainda sente muito incômodo. Nesses dias ela simplesmente tenta esquecer o que estamos vivendo. Quando chega em casa, come pão com ovo, com saudade do mundo que ela via pela janela de ônibus viajando, pensando no que ainda vai ser possível conhecer pelo sabor, sem limitações e sem medo, assim como um risoto favorito de 2017.

Tânia Muller não se acostuma com a estranheza dos rostos cobertos por máscara no supermercado, mesmo com o passar dos meses. Mas considera manter o hábito para quando estiver doente, assim como limpar as compras com álcool ou água e sabão. A cabeleireira de Jaraguá do Sul percebeu quanta coisa ‘suja’ levava para casa e guardava sem imaginar os riscos. Como mora com a mãe idosa, é ela quem vai às compras semanalmente para adquirir o que considera essencial em sua ‘cesta básica’: grãos, cereais, frutas, folhas, legumes, ovos e temperos. Tânia virou vegetariana depois dos 40, pois sempre admirou quem faz essa escolha de poupar os animais, e resolveu mudar quando percebeu que lhe fazia mal ficar em frente ao açougue.

Apesar do pouco movimento durante os meses mais restritivos de isolamento social, ela não parou de trabalhar, nem tinha essa opção. Pelo contrário, tratou de fazer adaptações para tornar o salão mais seguro, comprando mais materiais descartáveis e sendo rígida com a permanência no ambiente. Por conta do trabalho, ela acaba não tendo muito tempo para cozinhar durante a semana, por isso reveza a cozinha com a mãe. Aos finais de semana e feriados, quando é sua vez de comandar a cozinha, Tânia testou receitas novas de pão, com mais grãos e farinha diferentes, enquanto sua mãe aprendeu a fazer doce de leite caseiro. Quando o filho a visita, ela trata logo de pensar em algo diferente, mudar o preparo de algum legume, acrescentar um tempero, caprichar na salada. Tânia gosta de experimentar todas as possibilidades apresentadas pelo vegetarianismo, seguindo receitas de livro ou improvisando.

Em dias especiais, Tânia gosta de preparar risoto de alho poró, saladas bem variadas, cozidas, cruas ou refogadas, ou ainda torta fria de legumes, abobrinha recheada, creme de abóbora. Tudo depende do clima e da companhia. Cozinhar ganhou um novo significado quando ela deixou de montar o prato apenas com arroz, feijão e carne.

Do lado esquerdo há uma prateleira com xícaras de porcelana antigas, do lado direito, um armário de cozinha.
Um canto da cozinha especial para Tânia, as porcelanas foram passadas de avó para neta. (Foto cedida pela entrevistada)

Em um canto especial da cozinha, Tânia guarda as xícaras que já foram de sua avó. Dela, a cabeleireira lembra dos pães feitos com fermento caseiro e de cada pedaço de massa crua que continuava fermentando até virar pão de novo. Com o leite ordenhado em casa, ela também fazia a própria ricota e o próprio iogurte. Tânia sente que a vida era mais natural e mais simples no tempo de sua avó, e também quando era possível abraçar os amigos .

Vilma Regina de Sousa trabalha em casa antes de todo mundo começar a trabalhar de casa. A costureira de Guaramirim virou autônoma quando decidiu sair da empresa do setor têxtil em que trabalhava. Hoje ela vê a decisão com ainda mais alívio, pois escuta de pessoas próximas que as empresas não estão seguindo os protocolos sanitários seriamente. Acostumada com a mistura das jornadas casa, trabalho e maternidade, Vilma aprendeu a ser prática, multitarefas e multipresente. Tudo é preparado no começo da semana, o feijão, o arroz, o pão e a higienização das saladas. Tudo está na quantidade adequada para ela e para o filho, sem desperdício. Na hora das refeições, é só esquentar, temperar e servir. Para Vilma, não tem desculpa para não comer ‘comida de verdade’.

A costureira leva uma vida simples e saudável, priorizando tudo de natural possível. Ela nunca precisou ler o Guia Popular para a População Brasileira para saber que o arroz com feijão é uma das combinações mais saudáveis que existem, mas fica satisfeita em saber que estava certa. Apaixonada por tapioca, saladas e omelete, Vilma come esses alimentos praticamente todos os dias em combinações diferentes. A salada compra da vizinha que tem horta, e no mercado só compra os alimentos essenciais. Ver o preço do arroz, do feijão e do óleo vegetal disparando a cada mês a deixou bastante preocupada, porque eles são fundamentais em sua casa e ela sabe que são fundamentais para a maioria dos brasileiros.

Seu filho mais novo, Eduardo, não é tão chegado às saladas quanto a mãe, mas adora fazer pirão de feijão e comer pão integral. Vilma o chama de ‘pãozeiro’ fica feliz quando ele se oferece para ajudar a comprar os ingredientes do pão. Ela se preocupa com a alimentação do filho, mas também está atenta a sua independência. Por isso, já o ensinou a temperar feijão e preparar arroz. Também não o impede de pedir um lanche de hambúrguer de vez em quando. Afinal, com 15 anos, o menino já ganha seu próprio dinheiro como menor aprendiz. Vilma só não aceita preparar fritura em casa, não gosta nem do cheiro. Por isso, as visitas já são avisadas com antecedência: sem coxinha, sem pastel.

A demanda de trabalho da costureira foi bastante afetada com a crise sanitária. Houve reduções de salário e de jornada, fazendo com que as pessoas economizassem e não comprassem roupas. Vilma tem bastante controle da sua vida financeira, mas sentiu medo e preocupação. Segurou o orçamento como pode e ainda se dispôs a ajudar quem precisava. A costureira começou a produzir máscaras e vender por um preço baixo, doando muitas para quem não tinha condições. Assim, conseguiu tirar uma pequena renda extra e ajudar no controle do vírus, de alguma forma.

Uma cozinha com armários marrons, em cima do fogão estão um bule e uma chaleira. Na parte de cima, potes de chá.
Nesta cozinha Vilma prepara suas refeições diariamente, em cima do armário ela guarda seus chás. (Foto cedida pela entrevistada)

Para ela, no começo da pandemia tudo parecia um filme de terror. Ficou com medo de tanta informação, de não ter trabalho, de não ter dinheiro para comprar comida. Meses depois, o trabalho foi entrando, a situação melhorou, mas Vilma vai continuar controlando e poupando até se sentir segura. Dentro de casa, ela nunca vai deixar faltar arroz e feijão, semanalmente vai continuar amassando seu pão integral, enquanto ouve o rádio esperando o fim de tanto medo.

Luciana de Oliveira mostra alguma dose de afeto em tudo que fala e faz. Seu jeito de falar é paciente, a escuta é atenta, as conversas vão longe. A atendente de farmácia, de Caçador, tem dividido a rotina entre o trabalho dentro e fora de casa, como sempre fez, mas lidando com os desafios impostos pela pandemia. Ernandes e Laura, seus gêmeos, de 10 anos, estão tendo aulas em casa, pelo ensino remoto emergencial, fazendo com que Luciana perca as contas das jornadas diárias. O marido é bastante presente, mas seu trabalho como caminhoneiro exige viagens semanais.

Com as crianças em casa, Luciana precisa ser prática. Faz o esquema de todas as mães que precisam de comida pronta rapidamente todos os dias. Cozinha feijão e arroz para a semana toda, deixando os acompanhamentos para preparar na hora da refeição. Os pequenos não são ‘enjoados’, comem de tudo. Laura já sente vontade de aprender a cozinhar, fica ao lado do fogão fazendo companhia para a mãe. Luciana também começou cedo, via os mais velhos cozinhando e foi aprendendo só de olhar. Quando cresceu, percebeu que gostava bastante e hoje cozinha com carinho para todos que ama. Leva bolos para seus colegas de trabalho na farmácia, sempre testa receitas diferentes para os almoços em família e amava receber os amigos para jantar até que chegou a pandemia.

Mesa servida de churrasco, salada de folhas e salada de batata com maionese.
Um típico almoço de domingo na casa de Luciana, a salada de batata com maionese é indispensável. (Foto cedida pela entrevistada)

O churrasco aos finais de semana é sagrado, mesmo sendo só ela, o marido e os pequenos. Não pode faltar salada de batatas com maionese e a carne macia, a qual Luciana busca atenta aos melhores preços no supermercado. Com o aumento de tudo, ela ficou extremamente preocupada. Foram mais de três semanas tentando comprar leite por menos de R$ 4,00 a caixa. Com filhos em casa e não consumindo café puro, não comprar leite não é uma escolha. Além de preocupada, Luciana sentiu indignação. Ela conhece os produtores da sua cidade e entendeu que esses valores não estavam sendo repassados para eles, o aumento não tinha a ver com lucro de quem produz.

Luciana consome muitos produtos locais, tantos dos produtores conhecidos como da produção familiar dos parentes. Compra banha de porco, salame, queijos, cucas e vegetais direto de quem faz e de quem planta. Antes da pandemia, costumava frequentar a feira do produtor, onde comprava tudo fresco semanalmente sem precisar ter que se deslocar até a parte interiorana da cidade. Mesmo com a distância, ela não abre mão desses alimentos.

Trabalhando na farmácia durante a pandemia, Luciana viu de perto o resultado da desinformação e da divulgação de soluções milagrosas falsas pelo próprio presidente da República. Os clientes apareciam em busca de ivermectina, um medicamento contra parasitas, hidroxicloroquina, usado no tratamento de malária, e tantas outras receitas sem comprovação científica contra o Covid. Se tentassem explicar a ineficácia para os clientes, era pior, havia resistência. Por outro lado, Luciana percebeu que remédios para outras doenças respiratórias, alergias e resfriado comum diminuíram bastante devido ao uso da máscara.

Quando isso acabar, Luciana vai reunir a família toda para um almoço, e depois todos os amigos para o jantar. Vai se despedir das crianças, já com saudade, quando elas voltarem para a escola. E em cada uma dessas ocasiões ela vai distribuir os abraços que tanto fizeram falta durante a pandemia.

Apesar de tantos exemplos de irresponsabilidade coletiva e falta de empatia durante esta crise sanitária, existe Luiza Pereira de Andrade (35), e Luiza é uma enfermeira durante a pandemia. Manezinha nascida e criada em Florianópolis, em uma família grande com três irmãs e um irmão, passou a infância sendo atleta. A vida fez Luiza virar cozinheira, e ela decidiu que também se formaria em enfermagem. Hoje não cozinha tanto. Em suas próprias palavras, ela ama cozinhar, mas cozinhar consome tempo demais. Tempo que ela já não tinha e que, durante a pandemia, chegaram a 90 horas de trabalho. No tempo que sobra ela não quer cozinhar, quer dormir, passar um tempo com a esposa, com a cachorrinha; quer ter o direito de esquecer durante pelo menos um episódio de série.

Quando está no trabalho, os pacientes de Luiza são os de grupo de risco ou estado terminal. Portanto, ela precisa ficar na residência, não há troca de turnos ou de enfermeiros, para evitar contaminação. Na casa dos pacientes, ela come a refeição preparada pelas empregadas das casas, e com elas divide receitas de bolos que tem na ponta da língua. Luiza adora ensinar sobre comida, para os colegas de restaurante em que trabalhava, para os amigos que criam grupos de receita no Whatspp, para a família que se reunia em almoços com mais de 50 pessoas e para quem mais quiser aprender.

A esquerda, um café na casa de Luiza quando há tempo. Do lado direito, uma das suas receitas de bolo que “não tem erro”. (Fotos cedidas pela entrevistada)

Não há o que ela não tenha aprendido a cozinhar — comida italiana, indiana, havaiana, mexicana. Tudo testado e aprovado nas festinhas de aniversário do irmão, que sempre pedia algo temático. Para a esposa, aprendeu até a fazer sushi. E com a esposa casou durante a pandemia mesmo. Não teve comemoração, Luiza jamais seria a favor de qualquer aglomeração na situação atual. As recém-casadas apenas saíram para almoçar, em uma mesinha do lado de fora do restaurante, longe de todas as outras.

Luiza tem noção de que boa parte das pessoas não estão tomando esse tipo de cuidado, ou algum cuidado que seja. A irresponsabilidade coletiva a irrita, a tira do sério, a entristece, principalmente vindo de quem tem acesso a informação e oportunidade de ficar em casa. A enfermeira já cansou, cortou relações com quem não respeita a saúde do próximo, com quem não tem empatia pelo luto coletivo, e não sente nenhum otimismo em relação ao futuro da pandemia.

Em seu próprio futuro, Luiza quer ter tempo para se alimentar melhor, quer cozinhar para a família toda um banquete daqueles de 50 pessoas. Quer chegar na casa das irmãs às 9h da manhã e passar o dia preparando um almoço que se estende até o café da tarde e a janta. Quer ver os sobrinhos crescerem, quer ajudar quem precisa sem nunca esperar retorno. Espera também sempre andar de mãos dadas com a esposa na rua sem medo.

Luiza tem muito para compartilhar, e se algum dia tirar seu livro da gaveta para contar a história da brilhante atleta mirim, da cozinheira afetuosa e didática, até seu desgastante e muitíssimo dedicado trabalho como enfermeira, vai acabar com um bestseller nas mãos. Para orgulho das 3 Luiza’s de sua vida, a esposa, a irmã e a mãe.

RECEITA DA VIRADA

A última Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo IBGE mostra que as famílias mais ricas gastam em média 7% do seu orçamento mensal com alimentação, enquanto as famílias de classe baixa utilizam mais de 20% do seu orçamento mensal para comer. A POF é uma pesquisa bastante extensa e detalhada, mas com essas informações já é possível dizer que comida é sim um indicativo econômico.

A média salarial de um catarinense empregado é de R$ 2.355,82 — um salário que não o classifica como uma pessoa rica. Para ele, talvez os 20% podem não significar um gasto expressivo. Mas se mudarmos o exemplo para um catarinense desempregado, enfrentando a pandemia com o auxílio emergencial de R$ 600,00 os 20% fazem a pessoa ter que escolher: comer hoje ou amanhã? E comer o quê?

Com o fim do auxílio até dezembro de 2020, desemprego batendo recordes, inflação da cesta básica disparada e uma segunda onda de Covid-19 para acompanhar o brasileiro até a chegada da vacina, a atuação do governo federal já mostrou a receita ideal para a virada de 2021. Negligencie direitos alimentares, ignore os índices de segurança alimentar, intervenha no mais importante documento sobre alimentação do país, deixe o Pantanal queimar, acrescente quase 14 milhões de desempregados, cozinhe durante uns 300 dias de pandemia, e está pronto para servir.

Apuração, redação e edição de Camila Saplak. A reprodução deste conteúdo só é permitida mediante consulta com a repórter.

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