A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar

Barbara Machado
Papo de Cinema
Published in
5 min readJan 15, 2017

Em 1818, quando Mary Shelley lançou sua famosa obra sobre uma criatura concebida pelo jovem e inteligente Victor Frankenstein, o mundo da literatura entrou em rebuliço com clássicos da era do terror gótico. Apaixonado por ciências naturais e autodidata nato, Victor faz o antes impossível; nas palavras do próprio:

“Tornei-me capaz de dar vida à matéria inanimada — de transformar a morte em vida”¹.

Provavelmente Frankenstein é livro de cabeceira do Dr. Robert Ledgard, personagem interpretado por Antonio Banderas no filme de Almodóvar. Em “A Pele que Habito”, Robert é um renomado cirurgião que por motivos pessoais e familiares adota uma postura antiética para o meio científico, mas genial: consegue criar uma pele super-resistente por transgêneses. No entanto, mais do que métodos cirúrgicos, o suspense de Almodóvar não agrada apenas médicos, também carrega diversas qualidades no roteiro, direção e atuação, que prendem a atenção de qualquer telespectador, ao mesmo tempo que nos dá aquele leve desconforto que sentimos quando perto de equipamentos cirúrgicos. É como se o diretor nos colocasse na maca, com uma — nada amigável — agulha em mãos, pronta para operar.

O monstro do Doutor Frankenstein e Vera.

Com um roteiro que foge muito bem do convencional, a história se desenvolve a todo momento; não perde o fôlego, nem queima a largada: surpreende do início até QUASE ao fim. Quase por que no fim o diretor peca e caí no confortável final que até o menos criativo telespectador imaginaria. Menos um ponto aqui. Entretanto, o início e principalmente o desenrolar do filme são de excepcional qualidade. Atuações incríveis de Antonio Banderas, demostrando muita confiança no papel, e de Elena Anaya, uma atriz que carrega nos olhos mais drama do que toda uma leva de artistas de Hollywood.

Os olhos expressivos da atriz espanhola Elena Anaya.

É importante destacar a atenção que o diretor dá para a estética do filme. Estética essa que não se restringe apenas a trama, mas também se incorpora em elementos do cenário, como a incrível maquiagem da atriz que faz pensar que é realmente a pele mais macia do mundo, pelo uniforme da empregada perfeitamente condizente com os tons da casa, pelo terno lustroso usado pelo doutor e seu cabelo sempre muito bem penteado, pelo cuidado com as obras de artes espalhadas pela mansão cuidadosamente planejada e mantida. Tudo isso para mostrar o fascínio de Robert pela beleza, pela harmoniosidade estética. Diferentemente de Victor Frankenstein, Ledgard não cria um mostro assustador e deformado, ele cria uma obra de arte, melhor do que qualquer ser humano, sem necessidade de nenhum retoque, como o próprio afirma.

O realce visual: pinturas e roupas com tons condizentes, e Robert, sempre muito bem vestido e penteado. A mansão é um ode estético de Ledgard à parte.

Assim como Robert, Almodóvar também foi muito meticuloso ao dirigir o filme, seja por um especial cuidado, seja para demonstrar tal característica na construção do personagem: o doutor coloca meticulosamente a luva, e tão meticulosamente quanto, a câmera trabalha. É impossível não notar os closes que as lentes dão em momentos estratégicos do filme, fazendo questão de mostrar a delicadeza dos procedimentos cirúrgicos.

A meticulosidade dos procedimentos cirúrgicos e da direção.

Por fim, é preciso destacar Vera, que vivendo em um corpo violado das mais diversas formas, precisa fazer da sua mente a sua casa, como desenhado nas paredes da sua prisão.

A mente como refúgio, provavelmente por ser a única coisa imaterial e que, portanto, o doutor não poderia operar.

Vivendo em um corpo que não é seu, e lidando com uma transexualidade forçada, a personagem passa a lidar com o aprisionamento e com os experimentos através da leitura e ioga, ao mesmo tempo que estrategicamente nutre a confiança de Robert ao ponto de se tornar “livre”. Entretanto, a prisão de Vera não se restringe a paredes, ela está também dentro de um corpo que não pediu para ter, presa dentro de um experimento bem-sucedido, mas não para ela. Torna-se um experimento e uma obra de arte, ambos a contra-gosto.

Dubiedade de Robert: seu trabalho científico ou sua obra-de-arte?

Mais do que uma ligação direta com a obra de Mary Shelley, Almodóvar não contextualiza apenas a história. Ele joga com papéis de gênero, e faz um belo trabalho ao criar um personagem que é ao mesmo tempo uma obra da ciência e uma obra de arte, e outro personagem que é tanto um cientista da literatura gótica quanto um Pigmaleão². Ele faz de seu próprio filme um Frankenstein: costura ciência, loucura, problemas familiares e confusão sexual em duas horas de película. Mas Almodóvar não constrói uma criatura monstruosa; ele é um bom cirúrgico e quase não deixa cicatrizes visíveis.

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