PRIMITIVE MAN HUNTING ANIMALS, de HappyMidnight.

Antigamente

Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade
3 min readNov 26, 2018

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Num dos bancos daquela praça que fica perto da sua casa, um velho e um jovem alimentam os pombos com alpiste. São completos estranhos para além do fato de alimentarem pombos no tempo livre, o que por si só já é um mistério insondável.

“Antigamente que era bom”, o velho solta, como se revelasse uma grande verdade para as aves.

“Ô…”, concorda o jovem. Os pombos seguem indiferentes.

“Antigamente não tinha essas coisas de ter medo de ofender as pessoas”, o velho continua. “Hoje qualquer coisa já é ‘ah, mas não sei o quê, sei que lá’…”

“É verdade”, o jovem responde sem interesse, sem entender quais não-sei-o-quês não-sei-o-queem os sei-que-lás. Ele emenda: “Antigamente as coisas eram mais simples, né?”

“Ah, com certeza eram!” Os olhos do velho quase brilham ao perceber que está falando com um rapazinho bonzinho, desses que não se perdem atrás daquelas telinhas com letrinhas pequenininhas. “Cê batia na criança pra ela aprender a não fazer mais besteira. Não tinha problema.”

“É mesmo”, o jovem concorda mais uma vez. No instante seguinte, faz menção de continuar, mas deixa o silêncio falar no lugar dele. Só depois disso, tal como o velho começou a conversa, diz como quem dá bom dia: “Se reclamasse, era só dar um soco na garganta que já calava a boca, né? Ficava tudo certo.”

O velho se surpreende por um momento e pensa bem antes de responder qualquer coisa. Será que é deboche, uma armadilha? Os jovens de hoje em dia são muito espertos. Resolve colocar o pé na água para ver se vai queimar ou se tá fresquinha: “Isso aí é mais complicado, mas garanto pra você que não apanhava quem não merecia.”

O jovem nem se espanta. “Com certeza”, ele responde como se as respostas do velhos fossem alimento para ele tal qual o alpiste é para os pombos. “Igual mulher: só apanham as vagabundas.”

Tá, agora o velho fica realmente desconcertado. Ele esperava que fosse acontecer o contrário.

“Saudades de sentir o chicote contra as costas de um macaco”, ele continua, se abrindo como as portas do último círculo do inferno. “Antigamente você podia esfolar um vivo se ele não quisesse trabalhar pra você. Eles acabavam fugindo de vez em quando, o que só dava mais razão pra serem esfolados.”

Esse menino só pode estar de sacanagem, é o que o velho pensa. “Você tá debochando da minha cara, não tá, moleque?”

“Claro que não, senhor!” O velho ouve a resposta sincera do rapaz e agora entende, realidade clara como o sangue que escorre do pescoço translúcido do menino. As cavidades dos olhos vazias e escuras como túneis de uma mina desmoronada. O menino não é jovem como os inexperientes de hoje em dia; é jovem como o planeta Terra, a Lua e o Sol na imensidão do universo.

“O passado é a terra dos mortos”, o jovem sorri uma dentição incompleta e putrefata para o velho. “Você vai para lá em breve. Não precisa ter tanta pressa já agora.”

O velho gritou. Os pombos ainda indiferentes.

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Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.