Desert walkers, por Tomas (deviantart).

Cuidado Com As Miragens!

Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade
3 min readOct 5, 2015

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Lugar incerto, algum dia ensolarado de verão.

Querida miragem,

Tenho somente pensado nas palavras de um pastor que encontrei nos últimos dias. Depois de tanto tempo em andar por este deserto, pude avistá-lo com meia dúzia de ovelhas e um camelo, próximo a um oásis.

“Cuidado com as miragens”, ele repetia, e contava histórias de diversos viajantes que tiveram o azar de receber a ferroada do escorpião do deserto. Uma das vítimas, segundo o velho, mal pôde perceber que agonizava, de tão maravilhosas eram as visões que tinha antes de morrer. Nada que ele falava parecia fazer muito sentido. Nada neste deserto costuma fazer muito sentido.

Apesar de tu teres me dito que és uma miragem, e o conselho preocupado do velho parecer me alertar quanto a isso, tenho certeza de que ele está enganado. Não sei muito sobre ti, nem sobre teus sonhos, nem sobre teu passado, mas algo me diz que somos estranhamente familiares. Às vezes olho para a tremulante linha do horizonte, onde terra e céu se encontram, e posso ver tua silhueta alta caminhando, tão leve que mal deixa a marca dos teus pés na areia.

Poucas vezes pude te ter por perto. Dificilmente te encontrarei em uma dessas festas regadas a bebida e gente suada e feliz, ou um outro lugar comum, como uma sala de aula, por exemplo. Seria mais provável me encontrar te levando algo para comer e se divertir, no conforto de um sofá e de cobertas. Mas este deserto é vasto demais para que isso acontecesse até agora. Muitos desencontros para andarilhos do deserto como nós. Acho que por isso me sinto tão familiar a ti.

Há eventuais tempestades de areia em uma caminhada solitária. Noites muito frias e dias muito quentes, com certeza. Mas não há nada como caminhar sem obstáculos. Norte, Sul, Leste e Oeste, visíveis até onde se consegue ver. Não há muros, nem florestas, nem montanhas. Nada é obstáculo entre nosso destino e nós mesmos a não ser nossos próprios passos.

No caminho, passamos por muitas pessoas, e rapidamente temos de ir embora. O gosto do deserto e da solidão livre pode ser amargo de vez em quando. Sabemos que há poucas coisas realmente permanentes nesse lugar, assim como são poucas as rochas e cavernas por baixo dessas dunas de areia que se movem com as ventanias.

E tudo bem.

Por mais incômodo que tudo isso possa parecer, principalmente durante as tempestades malditas, é assim que vaga teu espírito livre. Eu também estou me habituando a me perder por aí.

Não há trilha para nós. Nada que nos diga aonde devemos ir. Também nada que nos diga de onde viemos, pois as pegadas se apagam facilmente nessa areia. Podemos ser facilmente confundidos com miragens. Ainda mais tu, com esses teus olhos da cor de jade.

Quantos passos eu devo dar para te alcançar, miragem? Se estiveres ao norte, nada pode me separar de ti além da distância que eu tiver de percorrer. Apenas questão de tempo. Quando eu estiver a oeste, estarás tu disposta a vir também?

Imagino se chegaste a conhecer o mesmo senhor que eu naquele dia do oásis. Por isso me ponho a escrever esta carta. Pode ser que estejas me vendo, e me tomes por uma miragem também. Entretanto, cartas engarrafadas no meio do deserto permanecem. Não é como no oceano.

Caminharmos juntos seria uma excelente ideia. Há muito o que explorar. Dessa vez com alguém sem as mesmas preocupações de permanência e continuidade como os pastores e mercadoras que já encontramos neste vasto deserto. Apenas ir. O que vier de encontro é consequência.

Ou é isso, ou fui picado por aquele maldito escorpião. Estou escrevendo para alguém que pode não responder nunca.

Espero que respondas. Onde posso te encontrar e te cuidar?

Com carinho,

De outro viajante.

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Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.