Trecho do quadrinho do Zen Pencils, inspirado no discurso de Neil Gaiman à University of Arts.

Esse Tipo De Arte

Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade

--

A milhões de anos-luz daqui, houve uma vez um pequeno planeta. Era diferente do nosso; girava em torno de duas estrelas, e possuía seis satélites naturais. Era maior que o nosso mundo e era o sétimo dos treze planetas em seu sistema solar.

Aquele planeta abrigou muitos tipos de vida, alguns até inimagináveis para pessoas como nós. Entretanto, em certa época de sua existência, existiu uma espécie inteligente e consciente, assim como a nossa, que realizou diversos feitos. Nomeou as coisas ao seu redor, incluindo o nome de seu planeta, suas luas, seus sóis, e os planetas vizinhos. Seria lindo se fosse possível transcrevê-los, mas a verdade é que seria impossível sequer pronunciá-los. Também inventaram suas próprias ferramentas, atendendo as suas próprias necessidades.

Essa espécie tinha uma peculiaridade: eram sempre impelidos biologicamente a recitar e escrever poemas. Não importa a forma, haikai, redondilha, soneto, épico… apenas norteavam sua existência com esse propósito. Guerras foram travadas pela poesia. Desentendimentos foram causados. Triunfos foram alcançados através dela. Toda a história de existência dessa espécie foi marcada por sua inevitável relação com versos.

Curioso imaginar que, a uma infinitude de distância de nossa realidade, uma espécie fosse tão apegada a esse tipo de arte, você deve estar imaginando. Matava-se pela poesia, morria-se por ela. Mesmo as incompreensíveis artes que praticavam tratavam principalmente sobre poesia. Não havia um daquela espécie que não fosse poeta.

E entretanto, para eles, poesia não era encarada como arte. Afinal, era natural, todos a praticavam. Não era uma performance específica que apenas espécimes habilidosos seriam capazes de desempenhar. Os melhores poemas de nosso planeta seriam confundidos com obras de filhotes daquela espécie.

Milênios e milênios contemplaram a prosperidade dessa espécie sobre aquele planeta, até que fossem extintos e suas obras desaparecessem para sempre no escuro do universo. E ainda assim, deixaram de existir sem nunca ter chamado poesia de arte.

A história desse planeta, tão diferente e indiferente ao nosso, quase não nos serve para nada, além da simples curiosidade. Mas há uma grande semelhança entre nós e essa espécie, ainda que nunca tenhamos nos encontrado. Não, não é a poesia.

Também há um tipo de arte que praticamos, mas não sabemos. Quem sabe andaremos sobre esta terra até o último de nossos dias e não descobriremos este segredo. Assim como essa espécie distante, matamos por ele, morremos por ele. Travamos guerras e dedicamos maior parte de nossas artes para exaltá-lo, sem saber que ele mesmo é esse tipo de arte.

O amor.

--

--

Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.