Godong/Alamy

Psicografia

Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade
3 min readAug 4, 2015

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Inferno, 06 de Setembro de 1993.

João, meu amor,

Me perdoe se a carta não estiver legível. Na verdade, duvido muito que esse pedaço de papel lhe alcance. Faz pouco mais de uma semana que estou aqui no inferno. Sinto sua falta a cada dia que passa. A Eternidade é sofrida por aqui.

O calor é de mil sóis, juntos e sobrepostos em uma única figura. Demônios andam nos arrastando por correntes, e ontem mesmo fui marcado com o número da besta na nádega esquerda a ferro, como um animal.

Me perdoe mais uma vez, eu sei que não são boas notícias. Talvez você esperasse uma carta vinda do paraíso, entregue por um anjo imaculado, flutuante. Costumamos ter essa visão das pessoas que morrem. Eu pensei muito antes de decidir escrever para você. Talvez fosse melhor lhe deixar na ignorância, mas não resisti. Eu precisava pelo menos ter a sensação de estar em contato com você.

Amor, o choque foi muito grande quando cheguei aqui. Nunca acreditei em inferno. Sempre preferi pensar em um final feliz para todas as pessoas, até as mais inconvenientemente ruins. Sempre acreditei que a justiça significava isso. Porém, ao chegar aqui, entendi perfeitamente uma verdade: a existência não tem nenhum compromisso com a justiça.

Você tem de concordar, amor. Estávamos juntos há mais de quatro anos, e eu havia acabado de chegar aos meus vinte e sete. Por que aquele carro teve de vir na minha direção? Eu estava apenas esperando o ônibus no ponto. Ansioso para chegar em casa e ver você, e ter você só para mim. Dentro de mim, pulsando…

Me parece que o motorista também morreu, mas não sei como ele foi julgado e para onde ele foi. De qualquer forma, não guardo nenhum rancor dele. Misericórdia, não é isso que Deus nos ensina? Pois bem, não foi bem isso que encontrei em meu julgamento.

Fui condenado ao inferno por heresia e sodomia.

É irônico que alguém como eu, que é chamado de Téo, possa se encontrar no inferno. É no mínimo irônico demais. Mas Deus me condenou. Colocou o dedo na minha cara e me empurrou para Satanás. Ele disse que estava escrito no livro Dele que era proibido ao homem amar outro homem.

João, como eu posso entender esse Deus? Como posso assimilá-lo? Ele diz que me ama, e que ama todos os Seus filhos por igual, mas não aceita o amor que eu sinto por você. Fui condenado a sofrer eternamente apenas porque amei verdadeiramente na minha vida. E pode parecer doentio, mas sabe o que me conforta? Saber que, mais cedo ou mais tarde, você estará aqui também, fazendo companhia ao meu sofrimento. Eu desejo muito que você encontre outra pessoa que lhe faça feliz como eu fiz, ou até mais. Não sou possessivo com o meu amor, vou guardá-lo até você vir ao meu encontro.

Como eu disse, não foi esse o final feliz que esperei por toda a minha vida. Mas se for o único final que eu possa estar com você, então tudo bem. Não será nada que extinguirá meu amor por você, João, nem Deus. É isso que eu chamo de amor incondicional.

Se o João de Jesus, o Apóstolo, fosse como nós — será que ele teria previsto esse final? Se Deus fosse como nós, será que ele agiria assim?

Por quê? Por quê? Eu vou continuar me perguntando, até o fim dos tempos. Até você chegar para me fazer companhia.

Porque você, meu amor, eu amo mesmo em chamas, mesmo sem fé, mesmo destruído pelo desespero eterno.

Daquele que sempre lhe amará,

Téo.

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Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.