Se Eu Morrer Amanhã

Viver é colecionar últimos momentos

Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade
7 min readOct 15, 2015

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Para Gabriel, a morte é democrática. Não há muitos privilégios na hora de morrer. Ninguém sabe quando. Ninguém sabe como. Você pode estar lá na melhor fase da sua vida e bang!, pronto.

Só que ninguém gosta muito de pensar nisso. Todo mundo vive tentando controlar a vida e seus desdobramentos. Gabriel sabe, porque ele também o faz. Mas a vida é frágil. Pensamos tanto na vida que esquecemos como ela virá a acabar. Temos a vaga ilusão de que poderemos também escolher essa hora, ou de que é melhor deixar para pensar nisso quando envelhecermos. É, como se só idosos morressem.

Gabriel nunca soube muito bem no que acreditar do pós-vida. Ele não se lembra de nada que poderia ter vindo antes, então não vê muito sentido que haja algo depois. Claro, até ele tem suas fantasias sobre como o pós-vida poderia ser, mas isso é diferente de acreditar nelas. Já que não se pode ter controle da vida nem da morte, pelo menos podemos escolher a forma mais conveniente de ver o outro lado, não é?

Só que ninguém gosta muito de pensar nisso. Às vezes, algo nos faz lembrar, quando quase somos atropelados por um carro quando atravessamos um sinal fechado, quando somos assaltados a canivete no caminho do trabalho, ou até quando sofremos um acidente dentro de casa. Entretanto, a vida é esse caos, essa loucura sóbria, e muita gente pode morrer por coisas que não fez. Gabriel, por exemplo. Tem uma tia estúpida que resolveu pegar empréstimo com agiotas.

Já fosse isso motivo suficiente para Gabriel temer pelo destino de sua tia, que, por deus, não consegue odiar nem por ter feito a burrice que fez, sempre pode ser pior: os caras ficaram com o telefone da casa dele como referência para cobrança.

Agora, dia sim, dia não, o telefone fixo toca. Alguém atrás de sua tia. Ameaças sutis de que virão ao endereço de Gabriel (sim, eles sabem) e levarão coisas de valor caso ela não pague. Sua mãe posa de forte, e disfarça o desespero com palavras graves e altas ao telefone com o respeitado cobrador. Mas Gabriel a conhece, ela é do tipo que chora quando ninguém está olhando.

“Chame a polícia”, você pode ter pensado. Gabriel mora na Zona Oeste do Rio de Janeiro, meu caro leitor. Ele não se surpreenderia se sua tia tivesse pegado dinheiro com o próprio delegado. Arriscar para quê?

Então, sim, Gabriel pensa, realmente é uma chance vaga e improvável. Mas talvez seja o mais próximo que sua vida já chegou de desaparecer. Gabriel sempre teve uma vida sem muitas emoções e sempre se orgulhou disso. Infância, escola, vestibular, faculdade… e um balaço na cabeça para mandar um recado a uma pobre senhora endividada. Vai saber? A vida tem dessas coisas. Se não ele, sua mãe, sua tia.

Gabriel está assustado.

Já que não pode fazer muito a não ser torcer para que tudo se resolva e seja esquecido, pelo menos pode escrever. É uma ideia idiota a essa altura, mas veja bem, há pessoas que fumam, pessoas que bebem. Gabriel escreve.

“Hoje minha mãe disse que Deus é Pai. Respondi que se for mesmo, somos todos órfãos.

A natureza desse texto pode se provar inútil daqui a um tempo. Deus deve saber o quanto eu quero que isso seja verdade. Não escrevo nenhuma dessas palavras desejando que as leiam quando eu não estiver mais aqui. Mas Deus deve saber também os filhos perversos que Ele criou, e por causa disso, existe uma remota chance desse texto ser útil. Nesse último caso, eu tenho coisas a falar. Se eu morrer amanhã.

Primeiro, não quero ter a sensação de que vivi tudo o que tinha de viver. Vivi muito pouco para querer isso. Seria egoísmo com aqueles que ainda podem viver bem mais do que eu. Seria querer que elas vivessem tão pouco quanto eu. Se eu viver pouco, tudo bem. Espero deixar saudades. Para isso eu acho que posso ser egoísta. Entretanto, sei que todos uma hora irão superar e seguir em frente, e isso eu também espero, porque é o certo. O mundo vai continuar, então não se prendam a ninguém, nunca.

Eu não quero morrer. Vejam só, justamente quando estava pegando gosto por essa coisa chamada vida; pegando o jeito desse jogo. Tenham certeza de que, se morri, foi porque soube exatamente o valor que minha vida tinha, e que se parti, não foi jogando minha vida fora. Nunca faria isso. Conheci pessoas que tentaram, conheci pessoas que conseguiram. A vida é uma só, até onde se sabe. Não pagaria para descobrir por mim mesmo.

Viver significa muitas coisas. Uma delas é que você com certeza decepcionou pessoas. É inevitável, afinal às vezes alcançar a felicidade própria e decepcionar alguém são a mesma coisa. Para aqueles que se decepcionaram comigo, gostaria que esquecessem qualquer rancor. Não por mim, mas porque faz mal mesmo. Achei que esse texto seria um bom momento para dizer isso, já que passar pela experiência de escrevê-lo me faz repensar várias coisas, e uma delas é a de que eu também não tenho de guardar rancor de ninguém nesse mundo. Então, ninguém que me decepcionou precisa se preocupar com assombrações, carmas em vidas posteriores ou nada dessas merdas.

Eu sou muito novo para deixar posses consideráveis no nome de alguém. Desejo apenas que qualquer parte de herança que meu pai queira deixar para mim seja deixada para meu irmão mais novo. Qualquer coisa que minha mãe fosse me deixar, pode continuar com ela, ou ser doada da forma que familiares e amigos acharem melhor. Esses últimos têm o direito de pegar qualquer uma das minhas coisas como lembrança, se assim quiserem. Fica a critério deles como decidir isso, já que acho que não dará trabalho nem desavença.

Me orgulho bastante de maior parte das coisas que eu fiz. Também me orgulho muito de todas as amizades que tive. Sem elas, eu não teria sido nada. Algumas dessas pessoas foram verdadeiros anjos na Terra, e espero, com sinceridade, que eu tenha sido para elas pelo menos um décimo do que foram para mim. Dá para dizer que tive muitos irmãos, não só por causa dos seis sanguíneos, mas por muitos amigos que me viram no fundo do poço e me tiraram de lá, assim como eu fiz o mesmo por eles.

A quem disse que amei, não se enganem. Não me lembro de ter mentido a ninguém quanto a isso. Talvez eu tenha me enganado alguma vez, mas mentir deliberadamente, nunca. Todas as vezes que disse foram verdade.

O que aprendi com tudo isso é que a vida não é curta. Ela é mistério. Pode ser curta, pode ser longa, pode ser saudável, pode ser sofrida. E pensar em morrer me assusta, porque agora que sinto o peso disso como nunca senti antes, vejo que nenhum momento nunca deve ser desperdiçado. Viver é colecionar últimos momentos.

A gente vive a vida toda repetindo isso, mas só em momentos assim percebemos. Se nada me acontecer, prometo fazer jus a essa verdade. As chances são grandes de tudo se resolver, e me pego otimista até, por ter podido chegar a esse nível de compreensão da vida sem correr riscos maiores que muita gente aí tem que passar para perceber.

Entretanto, gosto de trabalhar com as probabilidades. Por isso, por mais diminuta que seja a chance, se eu morrer amanhã, mesmo que não seja pelos motivos que espero, este texto está escrito.

Porque o que me assusta mais que morrer é morrer sem ter me despedido, sem deixar nenhuma palavra. Sempre escrevi sobre tudo, e com a minha morte não vai ser diferente.

Com muito carinho a quem possa interessar,

Gabriel”

Talvez seja um grande exagero, Gabriel pensou, ao terminar o testamento. Talvez vá só assustar um monte de gente desnecessariamente. Ele torce para que sim, e tem bastante confiança de que assim será, mas não poderia deixar passar em branco. Não poderia correr o risco, menor que fosse, de apagar sem ter dito nada a respeito. Ele espera que todos entendam.

Isso lhe traz à mente uma conversa que teve recentemente com um amigo sobre o que há do outro lado.

— O paraíso me parece ser nada mais que um alento para aqueles que precisam acreditar no que vem depois. Por que necessariamente o pós-vida teria de ser um bom lugar, por exemplo? Poderia ser um lugar horrível, e não saberíamos. É conveniente para a gente pensar que é um bom lugar, não acha? — Gabriel comentou com o amigo.

O amigo riu e apenas perguntou:

— Então qual seria o paraíso mais conveniente para você?

— Acho que seria perfeito se, independente da forma que você morreu, tudo fosse só um jogo. O maior dos jogos, sabe? Você ia acordar, como uma alma amorfa, dentro de uma máquina. Ao sair, estaria em uma sala de jogos cheia de outras máquinas. Tipo um fliperama, saca? E aí poderia escolher, de acordo com as fichas que seu desempenho fez a máquina expelir, jogar o mesmo jogo com outro personagem numa dificuldade mais fácil, mais difícil, ou jogar outro jogo da sala. Vai saber em que mundo seria, como qual espécie você nasceria, as possibilidades seriam várias. A sala, do tamanho do universo.

— E por que você acha que seria melhor assim?

— Porque aí realmente isso aqui seria uma passagem. Um entretenimento. Acordaríamos do outro lado lembrando de todos os momentos bons nos quais nos divertimos, e nos seriam reais por causa disso. E todo o sofrimento sem sentido, todas as lágrimas derramadas por tanta coisa triste…

— O que seriam delas?

— Seriam só a parte difícil do jogo. Você nunca lembra dessas partes quando o jogo termina. Só lembra do quanto se divertiu.

— É verdade, Gabriel. É verdade.

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Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.