Analisando dados da OD 2017 II: usuários de app têm carro ou deixaram de lado?

99
Para onde vamos?
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7 min readSep 2, 2019

O acelerado crescimento urbano brasileiro a partir da década de 1970 trouxe consigo grandes incentivos à posse de automóvel nas cidades, cujo desenvolvimento se deu sob uma lógica rodoviarista. Nos dias atuais, porém, o interesse das pessoas em possuir um veículo vem caindo à medida em que emergem novas tendências sociais e tecnológicas.

Alguns dados recentes ilustram esse fenômeno: e entre 2014 e 2018, caiu 32% o número de CNHs emitidas mensalmente no Brasil, o que pode ser um indicativo da redução do interesse dos jovens em dirigir. Esta tendência suscita o debate entre especialistas em transporte urbano, uma vez que a correlação entre possuir um automóvel e fazer viagens de carro é sempre objeto de análise na área.

Um exemplo de fator que altera esse cenário é o surgimento de aplicativos de transporte, que abriram uma possibilidade maior de se utilizar o automóvel apenas em deslocamentos eventuais, em conjunto com o uso de transporte coletivo e ativo no dia a dia.

Dessa forma, buscando explorar a relação entre posse de automóveis, o número de viagens individuais motorizadas e o uso de aplicativos, a equipe de Políticas Públicas da 99 apresenta o segundo artigo da série em que explora os dados da mais recente Pesquisa Origem Destino (OD) do Metrô de São Paulo, divulgada no mês passado. No primeiro texto, verificou-se que usuários de aplicativo têm perfil mais multimodal, uma vez que 36% de suas viagens são feitas por outros modos, em comparação com 10% por motoristas de carro e 8% os de motocicleta.

No presente artigo, a ideia central é entender se esse comportamento tem relação com a posse de automóveis nas residências. Afinal, usuários de aplicativo possuem menos carro do que a população em geral, ou, na média, usuários de aplicativo também possuem carro em seus domicílios? Essa parcela das famílias que não possui um carro de fato faz menos viagens por automóvel, ainda que tenham renda para utilizar táxis ou aplicativos? São essas relações que esta análise preliminar dos dados da pesquisa proporá a seguir.

Pessoas sem carro de fato fazem menos viagens individuais motorizadas?

A primeira questão levantada para análise exploratória dos dados da Pesquisa Origem-Destino foi a correlação entre posse de automóvel e quantidade de viagens individuais motorizadas (carro, moto, aplicativo ou táxi) feitas por uma pessoa. Para isso, as pessoas entrevistadas na OD foram separadas em dois grupos (com e sem carro no domicílio) e foram contabilizadas as quantidades de viagens realizadas nos modos individuais acima descritos.

Como é bem conhecido que a renda é o principal fator relacionado à posse de veículos e usuários de aplicativo não têm a mesma distribuição de ganhos do resto da população, todas as análises a seguir foram feitas dividindo a população também em cinco grupos de tamanho equivalente (quintis) de renda familiar.

Assim, primeiramente, calculou-se o número de viagens individuais motorizadas por pessoa em cada faixa de renda, comparando pessoas com e sem automóvel no domicílio, o que é ilustrado pelo Gráfico 1, abaixo:

Gráfico 1: Comparação do índice de viagens individuais motorizadas (carro, motocicleta, táxi ou aplicativos) por faixa de ren
Gráfico 1: Comparação do índice de viagens individuais motorizadas (carro, motocicleta, táxi ou aplicativos) por faixa de renda entre a população com e sem posse de automóvel.

Além da grande diferença do número de viagens por pessoa com automóvel e sem em todas as faixas de renda, o que já era esperado, é curioso notar como nem a renda é tão importante como fator determinante do número de viagens individuais motorizadas quanto a posse de automóvel.

Nota-se que:

O índice de viagens individuais motorizadas de pessoas com automóvel é muito elevado, chegando a 1,32 no caso da maior faixa de renda.

Estes índices são muito inferiores na parcela da população sem automóvel, na qual o índice da maior faixa de renda (0,45) é menor que o índice da menor faixa de renda com carro (0,62).

Fica claro, assim, como o número de viagens individuais motorizadas está ligado à posse do automóvel pelas famílias da RMSP, já que pessoas de domicílios sem automóvel fazem significativamente menos viagens por carro, motocicleta ou aplicativos do que as que possuem um carro.

A segunda questão analisada foi o uso de aplicativos para estes grupos, ilustrada no Gráfico 2, abaixo, que mostra o número de viagens por aplicativo por pessoa, de acordo com renda e posse de automóvel:

Gráfico 2: Comparação do índice de viagens por aplicativo por faixa de renda entre a população com e sem posse de automóvel.

Por este gráfico, é possível ver que, principalmente para as duas últimas faixas de renda, os aplicativos são muito mais representativos entre as pessoas que não possuem automóvel. Na faixa mais rica, por exemplo, este uso é quase 3x maior do que em usuários que possuem carro.

Este é mais um indício que reforça que os aplicativos são parte importante do comportamento multimodal da população que não possui carro, principalmente entre usuários de maior renda.

E, afinal, usuários de aplicativo possuem menos carros?

Depois de concluir que a posse do automóvel é diretamente proporcional às viagens individuais motorizadas e inversamente proporcional às viagens por aplicativo, buscou-se, então, entender uma das questões mais importantes: afinal, usuários de aplicativo possuem menos automóvel do que a média da população?

Assim, mediu-se para cada faixa de renda, a posse de automóvel no domicílio entre a população em geral (que faz pelo menos uma viagem no dia) e usuários de aplicativo. Os resultados estão presentes no Gráfico 3, abaixo:

Gráfico 3: Comparação da posse de automóvel por faixa de renda entre a população geral e os usuários de aplicativo de transporte.

É possível verificar que para todas as faixas de renda a posse de automóvel é significativamente menor entre usuários de aplicativo do que para o geral da população, chegando a 23 pontos percentuais na segunda faixa de renda mais rica.

Ou seja: usuários de aplicativo possuem menos carros em seus domicílios do que a média da população: enquanto 51% daqueles do primeiro grupo têm um automóvel, 55% das pessoas, em geral, contam com um carro em casa.

Em conjunto com os dados mostrados anteriormente, isso provavelmente explica boa parte do comportamento mais multimodal de usuários de aplicativo mostrados no primeiro artigo desta série. Uma vez que, na média, usuários de aplicativo possuem menos automóveis em casa, realizam menos viagens por automóvel e, consequentemente, andam mais a pé ou por transporte coletivo.

Assim, existe um indício que a presença de aplicativos na Região Metropolitana de São Paulo contribui para uma menor necessidade de posse de automóveis e, consequentemente, menos viagens utilizando carro.

O caso da motocicleta

Uma alteração significativa visível na Pesquisa Origem Destino de 2017 em comparação com a OD 2007 é o crescimento substancial (53%) das viagens realizadas por motocicleta. Por ser uma opção de transporte de menor custo e, muitas vezes, que gera menores tempos de viagem que o automóvel, muitas pessoas vêm escolhendo utilizar este modo em vez do carro ou do transporte coletivo.

A análise da seção anterior foi replicada para a posse de motocicleta, e o resultado que está representada no Gráfico 4, abaixo:

Gráfico 4: Comparação da posse de motocicleta por faixa de renda entre a população geral e os usuários de aplicativo de transporte.

Nas faixas de renda mais baixas, a posse de motocicleta é quase inexistente no domicílio das pessoas que utilizam aplicativo. Agregando o dado da mesma forma de como foi feito para a posse do automóvel, é possível dizer que a posse de motocicleta cai de 10% entre a população geral para 6% entre usuários de aplicativo.

Isso quer dizer que a posse de motocicleta é menor entre usuários de aplicativo, principalmente nas camadas de menor renda, usualmente as principais usuárias de motocicleta em seus deslocamentos diários.

Destaques e próximos passos

Neste artigo, buscou-se relacionar e quantificar a relação entre o uso de aplicativos e a posse de veículos individuais motorizados, especificamente automóveis e motocicletas, e o quanto isso se relaciona com o número de viagens feitas com estes veículos. É importante mencionar que essas correlações não implicam causalidade.

Evidenciou-se que:

  • A parcela da população da RMSP que não possui automóvel, ainda que sua renda seja mais alta, faz menos viagens individuais motorizadas.
  • Aplicativos são parte importante do comportamento multimodal de pessoas que não possuem carro ou motocicleta, o que pode indicar que eles funcionam bem como substitutos do automóvel próprio em deslocamentos específicos, já que seus usuários também usam mais outros modos coletivos e ativos.
  • Dessa forma, políticas públicas que desincentivem a posse de carro, como a exclusão de valores mínimos de vagas de garagem em residências ou o aumento do preço do estacionamento em áreas públicas, podem reduzir o total de viagens feitas por modos individuais motorizados e produzirem grandes impactos positivos no transporte urbano das cidades brasileiras.

Fique atento. Em breve subiremos novas publicações com análises da Pesquisa Origem Destino de São Paulo no nosso Medium e muito mais.

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