Regulamentar sem retroceder

99
Para onde vamos?
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6 min readJul 10, 2018

Normas que regulamentam aplicativos de mobilidade devem garantir segurança dos usuários, mas não podem impedir inovação e desenvolvimento econômico

Tráfego na avenida Paulista, em São Paulo (foto: iStock)

Todas as metrópoles no mundo enfrentam desafios para diminuir os índices de congestionamentos e oferecer opções de transporte com qualidade. Não é simples elaborar soluções para cidades adensadas em que a maioria da pessoas faz pelo menos dois deslocamentos diariamente.

Certamente, a tecnologia é uma aliada nessa empreitada.

Sensores de movimento, georreferenciamento e análise de dados podem contribuir para melhorar o funcionamento das cidades.

E, hoje, aplicativos de intermediação de transporte individual, como a 99, já auxiliam a otimizar o fluxo do trânsito.

O uso da plataforma digital tende a diminuir as taxas de congestionamento. Como um mesmo carro de aplicativo é usado intensamente — atende a várias pessoas ao longo do dia e, em alguns casos, a mais de uma ao mesmo tempo — é menor a necessidade dos passageiros de comprar um carro próprio, assim como é menor a quantidade de carros circulando pelas ruas.

A praticidade dos aplicativos também já ajuda passageiros a acessarem redes estruturais de transporte. Os cidadãos que dependem do transporte público em horários carentes de transporte ou que vivem em lugares com transporte deficiente podem utilizar os aplicativos para suprir essa demanda.

Além dos efeitos benéficos ao trânsito, os aplicativos de mobilidade possuem papel sócio-econômico relevante. Os milhares de motoristas que usam a plataforma de tecnologia potencializam seus ganhos.

BENEFÍCIOS PARA A SOCIEDADE

É por isso que consolidar a normatização do setor foi tão importante. No fim de março, a legislação federal (Lei nº 13.640) que regulamenta o transporte remunerado privado individual de passageiros foi sancionada pelo Presidente da República Michel Temer, depois de ter tramitado durante cerca de dois anos no Congresso Nacional.

Imagem do Congresso Nacional, em Brasília (Shutterstock)

Corretamente, o texto aprovado pelos legisladores dá liberdade aos motoristas de exercerem o direito legítimo de trabalhar. Na redação final, retirou-se artigos que limitariam a atuação dos milhares de motoristas e tirariam deles oportunidade de gerarem renda para suas famílias. Foram excluídas, por exemplo, a obrigatoriedade dos carros terem placas vermelhas, a restrição de se trabalhar apenas na cidade em que o motorista emplacar o seu veículo e a necessidade de possuir uma autorização específica emitida pelo município.

Apesar da legislação federal, agentes públicos Brasil afora estão ensaiando movimentos para regular o serviço além da competência que lhes foi atribuída. Gestores de algumas cidades passaram a defender medidas que praticamente impedem os motoristas de continuarem trabalhando por meio das plataformas de mobilidade.

Tentar impôr restrições como a já mencionada placa vermelha ou a obrigatoriedade do motorista emplacar o carro na cidade em que vai trabalhar — além de cercear o direito deles trabalharem — são medidas que contrariam o sentido da legislação aprovada no Congresso, que pretende garantir os direitos de motoristas trabalharem sem entraves e burocracias excessivas.

A própria Lei Federal discrimina quais os pontos aptos à regulação municipal. Regulações locais que excedam as matérias já elencadas pela Lei Federal e aptas à regulação não só são contrárias à lei, como também violam frontalmente regras de competência legislativa e princípios importantes da Constituição Federal — como o direito de exercer o seu trabalho, a livre iniciativa e a livre concorrência.

Além disso, a criação de eventuais normas retrógradas, como, por exemplo, as que impõem burocracia excessiva prejudicam os milhares de motoristas e passageiros que, hoje, utilizam os serviços de intermediação de transporte individual da plataforma.

REGULAMENTAÇÃO EQUILIBRADA

De acordo com especialistas que participaram do 1º Summit de Mobilidade Urbana LATAM, realizado pela 99 em parceria com o jornal O Estado de S.Paulo, as normas que regulam mercados de tecnologia precisam, sim, estar atentas à defesa dos usuários, mas devem ser flexíveis o bastante para não barrar a entrada de novos atores e atravancar a inovação.

“Do ponto de vista da concorrência, a regulamentação deve ser suficientemente flexível para permitir que novos modelos de negócios operem em mercados já existentes ou mesmo criem novos mercados”, afirma David Lamb de Valdés, diretor de promoção da concorrência da Comissão Federal de Competência Econômica (COFECE) do México.

O professor da FGV e ex-diretor da SPTrans, Ciro Biderman, reforça que os governos precisam alterar a maneira que encaram o serviço de intermediação de transporte para não barrarem a inovação.

“Mudou-se a maneira que as pessoas se movimentam, potencialmente isso ainda tem muitos desenlaces que estão por vir, mas a regulação do governo não está acompanhando isso. Estão tratando ainda o setor não como um fornecedor de serviço mas como um detentor de capital. Como se resolve isso? Com regulação correta e com governança correta e a gente tá indo muito devagar”.

De fato, as funcionalidades dos aplicativos de mobilidade resolveram vários dos problemas que antigas regulamentações buscavam solucionar.

“O uso dessa tecnologia provou-se uma excelente ferramenta para resolver de uma forma eficaz os problemas de informação assimétrica e coordenação entre condutores e passageiros, assim como resolveu vários dos problemas que enfrentam as autoridades no seu objetivo de garantir um serviço eficiente, seguro e de qualidade no transporte individual de passageiros”, destaca o diretor da COFECE David Valdés.

“As regulamentações para esses novos mercados não necessitam ser tão rígidas e, às vezes, pode contar com a autorregulamentação imposta pelas próprias empresas”, conclui.

O deputado federal Daniel Coelho (PPS-PE), relator do projeto de lei que originou a Lei Federal nº 13.640, também acredita que quanto menos entraves à tecnologia e à inovação, mais a sociedade vai se desenvolver.

“Quanto menos ingerência houver nesses serviços, melhor. Esse mercado é muito dinâmico, e a tecnologia avança a todo instante. Hoje, há poucos aplicativos que oferecem esses serviços. Mas, daqui a alguns anos, dezenas de startups estarão em plena atividade, o que será ótimo para o consumidor. E a lei nem sempre tem a mesma velocidade para se adaptar às repentinas mudanças da realidade. Portanto, quanto menos amarras, melhor”, afirma o deputado.

COMPETÊNCIA DOS MUNICÍPIOS

A Lei nº 13.640 garante a segurança de passageiros e motoristas ao conceder aos municípios e ao Distrito Federal a possibilidade de regulamentar alguns aspectos operacionais do serviço que constam dos artigos 11-A e 11-B.

Questões como, por exemplo, exigência de contratação de seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT), obrigatoriedade de inscrição do motorista como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), exigência de Carteira Nacional de Habilitação adequada à prestação de atividade remunerada, requerimento de certificado de registro e licenciamento do carro, além de apresentação de Certidão Negativa de Antecedentes Criminais do motorista.

Os legisladores municipais, muito possivelmente, têm se baseado no artigo 11-A da legislação federal para propor regulamentações mais amplas. No entanto, tal dispositivo deve ser lido e interpretado de maneira sistemática e à luz da Constituição Federal, sob pena de ser considerado inconstitucional.

Se o artigo 11-A for interpretado como uma delegação de competência legislativa exclusiva para municípios e o Distrito Federal com relação ao serviço remunerado de transporte privado individual de passageiros, estaríamos diante de uma afronta ao artigo 22, inciso XI da Constituição Federal, que diz: “compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte”.

De acordo com Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo da USP, a lei é muito clara: “os municípios não têm competência para regular sobre esse tipo de serviço”.

“Tentar impor restrições, como o uso da placa vermelha ou a obrigatoriedade de o motorista emplacar seu veículo na cidade em que vai trabalhar, contraria o sentido da legislação aprovada pelo Congresso, que pretende garantir os direitos de os motoristas trabalharem sem entraves e burocracias excessivas”, completa.

O artigo 11-A deve ser interpretado em conformidade com a Constituição Federal: compreende-se que o poder de regulamentação dos municípios e do Distrito Federal diz respeito à fiel implementação e execução da Lei Federal no âmbito local, vinculado ainda aos princípios que informam a Política Nacional de Mobilidade Urbana, bem como o próprio serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.

Em outras palavras, os municípios devem trabalhar para colocar em prática a legislação federal e executar a correta fiscalização dos serviços, mas devem fazê-lo sem a inclusão de elementos estranhos àquilo que a lei federal já dispôs.

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