A materialização da relação entre desenvolvimento e desigualdade a partir da análise do investimento externo direto

Giovanna Zequim Martins
Para Trocar Ideias
Published in
9 min readAug 31, 2020

Felipe Jukemura

Giovanna Zequim Martins

Assim como todo e qualquer conceito na ciência, as definições de “desenvolvimento” e de “desigualdade” foram e ainda são noções em disputa, que mudam conforme a configuração de forças na ordem internacional e o contexto histórico. Dito isso, o texto que se segue pretende abordar a construção e a desconstrução acerca desses temas na agenda internacional e como a definição teórica dos mesmos significa impactos práticos na realidade dos países, trabalhando mais especificamente com a questão do investimento externo direto (IED) nas relações internacionais.

Atualmente, há uma ampla gama de conceitos acoplados quando se pensa em desenvolvimento e em desigualdade, mas nem sempre foi assim. Adotando como parâmetro a normatização e a institucionalização promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), a primeira noção, desenvolvimento, começa a aparecer na discussão internacional por volta dos anos 40 e a segunda, desigualdade, somente cerca de duas décadas depois, já assinalando as prioridades dos países no Sistema Internacional (SI)

Isto posto, o desenvolvimento é consolidado como agenda no SI entre os anos 40 e 50, em um contexto de bipolaridade e de descolonização. Nesse primeiro momento, o desenvolvimento aparece de maneira estritamente econômica: países desenvolvidos, naquela época chamados de Primeiro Mundo, são aqueles com os maiores indicadores de PIB per capita. Essa concepção teve impactos concretos nos sistemas doméstico e internacional e no diálogo entre essas esferas, por exemplo a partir da noção etapista que esse desenvolvimento como crescimento pressupunha: os países do Terceiro Mundo deveriam se conformar com o SI existente e focar em fazer crescer sua economia nacional para saírem de etapas mais atrasadas e portanto avançarem, tornando-se assim países desenvolvidos.

Já nos anos 60, pode-se dizer que, para definir desenvolvimento, começou-se a levar em conta também as relações de assimetria e de poder no SI. Nesse contexto, um marco importante é a inclusão da pobreza, e, portanto, da desigualdade, na discussão de desenvolvimento por parte do Banco Mundial (BM), que assumiu como estratégia a “luta contra a pobreza”. Nos anos 70, seguindo a tendência de ampliação da concepção de desenvolvimento, e já pensando a desigualdade como variável acompanhante, num SI em crise econômica, porém em relativo apaziguamento político no que ficou conhecido como détente, incluiu-se no debate a noção das particularidades regionais do desenvolvimento e, portanto, das necessidades domésticas de cada país.

Um turning-point nas discussões sobre desenvolvimento e desigualdade marcam os anos 80, no qual os países desenvolvidos, especialmente Estados Unidos e Reino Unido, elegem regimes neoliberais e os países em desenvolvimento passam por profundas mudanças políticas e reestruturações econômicas, em uma situação de volatilidade e de enorme dívida externa. Nesse sentido, o desenvolvimento deixa de pensado como questões mais de cunho social e restringe-se à busca pelo equilíbrio macroeconômico e pelo fim da dívida, retomando um pouco da noção mais economicista que inaugura a agenda de desenvolvimento nas relações internacionais.

Já os anos 90, que perpassam pelo fim da Guerra Fria e pelos anos que ficaram conhecidos como a “década das conferências” da ONU, a noção de desenvolvimento é enormemente ampliada e inicia-se o entrelaçamento desta a várias outras discussões, aproximando-se da noção que hoje temos de desenvolvimento. É assim inaugurado um novo paradigma sobre o tema, que “puts people at the centre of development, regards economic growth as a means and not an end, protects the life opportunities of future generations as well asthe present generations and respects the natural systems on which all life depends” (HUMAN DEVELOPMENT REPORT, 1994, p. 16).

De maneira que, nos anos 90 e 2000, foi reconhecido o caráter multidimensional do desenvolvimento, fundamentado nos eixos da paz, do progresso atrelado à economia, da sustentabilidade ambiental, da justiça social e da democracia. Está bem definido esse novo paradigma no trecho a seguir, retirado do Human Development Report de 1994 do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD):

In the final analysis, sustainable human development is pro-people, pro-jobs and pro-nature. It gives the highest priority to poverty reduction, productive employment, social integration and environmental regeneration. It brings human numbers into balance with the coping capacities of societies and the carrying capacities of nature. It accelerates economic growth and translates it into improvements in human lives, without destroying the natural capital needed to protect the opportunities of future generations. It also recognizes that not much can be achieved without a dramatic improvement in the status of women and the opening of all economic opportunities to women. And sustainable human development empowers people-enabling them to design and participate in the processes and events that shape their lives.

Alguns exemplos que demonstram a transformação que os anos 90 e 2000 representaram para a discussão de desenvolvimento foram o surgimento de metas amplas acerca do desenvolvimento humano, como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e sua substituição pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a criação, pelo PNUD, do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), no qual o desenvolvimento e a desigualdade passaram a estar institucionalmente atrelados, levando em consideração que esse índice mede a expectativa de vida em termos de longevidade e de saúde, a alfabetização e a educação formal e a renda considerada digna para os indivíduos.

Human development gaps reflect unequal opportunity in access to education, health, employment, credit and natural resources due to gender, group identity, income disparities and location. Inequality is not only normatively wrong; it is also dangerous. It can fuel extremism and undermine support for inclusive and sustainable development. High inequality can lead to adverse consequences for social cohesion and the quality of institutions and policies, which in turn can slow human development progress (HUMAN DEVELOPMENT INDICES AND INDICATORS, 2018, p. 14).

E como em vias práticas promover tal promessa de desenvolvimento e de redução da pobreza em escala regional e global? Inúmeros mecanismos foram sendo apresentados ao longo dos anos, mas um dos mais notáveis, tanto por conta de suas promessas como pelo montante atrelado a essa prática, é o IED. Somente a título de comparação, no ano de 2019 foram contabilizados pelo Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (CAD) da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) uma movimentação de cerca de 27 bilhões de dólares na forma de assistência oficial ao desenvolvimento (AOD). E no mesmo ano dados da OCDE apontam que no mundo houve movimentação superior a 1.1 trilhão de dólares relacionado ao IED, já tendo alcançado valores quase duas vezes maiores que anteriormente a crise de 2008.

Então, antes de pensar se o IED promove redução de pobreza, desenvolvimento (e que tipo de desenvolvimento) e redução ou não de desigualdades, deve-se compreender o que ele é. Em linhas gerias pode-se compreender o IED como a aquisição no capital de uma empresa por um investidor não residente do país, e geralmente esse processo ocorre pela criação de filiais no país receptor do investimento ou por meio da implementações de joint ventures. Desse modo, o IED se mostra, a priori, uma relação muito vantajosa onde todos se beneficiam, no qual o país receptor tem um aumento na capacidade de gerar empregos, riquezas e mesmo aumentar a produtividade nacional.

Portanto, não há dúvidas que o IED é uma ferramenta eficaz para o incremento na riqueza nacional, inclusive por ser parte integrante da balança de pagamentos, contribuindo para resultados superavitários. Contudo, não existe consenso quanto ao fator desigualdade (desigualdade sendo aqui tratado restritamente em um sentido de desigualdade de renda), podendo-se, teoricamente, argumentar tanto a que o IED promoveria um aumento na igualdade como o oposto. A exemplo podemos pensar que a entrada de IED poderia levar a uma competição interna entre o capital nacional e o capital estrangeiro aumentando portanto a demanda por trabalhadores, mas mantendo-se a mesma oferta de mão de obra, desse modo, em tese, ter-se-ia um incremento dos salários em comparação com o lucro dos capitalistas, promovendo maior igualdade.

Contudo, o que pretendemos analisar aqui é como o IED pode acabar por promover maior desigualdade no país receptor e, afim de embasar esse argumento não só teoricamente, mas também empiricamente, usaremos de uma pesquisa realizada em 2018 que analisa dos fluxos de IED em países de diferentes rendas. Salienta-se aqui que a abordagem apresentada parte de uma análise muito voltada para as teorias do comércio (tais como a das vantagens comparativas ou o modelo de Heckscher-Ohlin) podendo o debate se tornar muito mais rico ao se apresentar pontos de discussão presentes na teoria da dependência, teorias da modernização ou outras.

Para se pensar então o impacto do IED na desigualdade, o estudo anteriormente mencionado parte de uma base de dados que cobre um período de 23 anos (1990–2013), de 96 países diferentes, separados em quatro grupos distintos, com renda per capita acima dos 12,746 dólares, entre 4,126 e 12,745 dólares, entre 1,046 e 4,126 dólares e inferior a 1,045 dólares. Os resultados da pesquisa apontaram que em todos os casos é possível ver alguma relação entre desigualdade e o IED: no caso dos países de menor renda o incremento de IED provocou uma redução da desigualdade de renda ao passo que, nos outros três cenários o IED provocou maior desigualdade. É importante salientar, contudo, que os impactos de IED nos países de maior renda não chega a ser metade dos impactos causados em países que estão compreendidos na renda entre 1,046 e 4,126 dólares.

O que explica essa correlação está atrelado a ideia do que se entenderia como um “trabalhador qualificado” em cada país. Compreender o que ésse trabalhador é necessário pois, parte-se do entendimento de que o IED causa um aumento na demanda de trabalhadores, tal qual anteriormente mencionado, contudo, essa demanda pode tanto ser por trabalhadores mais ou menos qualificados, a depender das condições locais onde o investimento vai se dar. É então interessante notar que quando se pensa no IED, o que se entende por um “trabalhador qualificado” é diferente entre o país de origem e o país receptor, assim, atividades realocadas de países mais desenvolvidos para menos desenvolvidos são, em geral, não intensivas em trabalho qualificado, para o primeiro, mas são intensivas na perspectiva do segundo. Isso acaba por criar uma maior demanda por trabalho qualificado tanto nos países mais desenvolvidos como nos menos desenvolvidos (OCDE, 2012).

Desse modo é possível melhor compreender os resultados da pesquisa mencionada, pois, em países de baixíssima renda per capita dada a disparidade muito grande entre a quantidade de trabalhadores mais capacitados e os menos capacitados, o IED cria uma demanda que só pode ser suprida pelos segundos (dada sua grande preponderância), de tal modo que a renda dessa grande massa de uma maneira geral aumentará, reduzindo a desigualdade de renda. Nos casos de rendas intermediárias, contudo, a atividade que o IED promove, apesar de requerer um trabalho não muito qualificado no país de origem, requer um relativamente qualificado no país receptor, criando-se assim uma demanda e um consequente incremento de salários para aqueles trabalhadores mais qualificados criando um abismo de renda ainda maior entre esses e aqueles não tão qualificados.

Por fim, ao considerar-se o grupo de países com maior renda per capita o IED promoveria desigualdade pois, geralmente, as empresas estrangeiras possuem uma vantagem de produtividade sobre empresas domésticas no país anfitrião, e um aumento no IED tenderia a elevar a demanda por salários para profissionais qualificados à custa de mão-de-obra não qualificada, sendo o aumento da demanda de trabalhadores qualificados reforçado por empresas nacionais que precisam replicar o que fazem as empresas estrangeiras para se manterem competitivas.

O que se observa então é que, em sua maior parte, o desenvolvimento vai estar invariavelmente atrelado a desigualdade. Isso se daria, em suma, pois, tal qual aqui tratada, a análise parte de um tipo de desenvolvimento não planejado e/ou controlado por outra “força” que não a do mercado, gerando o desenvolvimento em detrimento da igualdade, uma vez que o IED eleva a demanda relativa por mão de obra mais qualificada, que por sua vez leva a um aumento nos salários e nos níveis de emprego de trabalhadores altamente qualificados em relação aos de trabalhadores pouco qualificados.

Por fim, no intuito de não terminar com a ideia de que não é possível almejar o desenvolvimento sem a acentuação de desigualdades, vale notar que essa relação não é necessária, e é possível contornar esse problema com algumas ações por parte do Estado para que, por exemplo, a disparidade entre a qualificação dos trabalhadores não seja tão grande, investindo em educação, em capacitação dos trabalhadores, dentre outros. É fato que esse processo não é fácil e exige boa vontade, competência e articulação de inúmeros atores, mas ainda sim é possível almejar essa conciliação entre igualdade e desenvolvimento.

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