A Outra Pandemia: história e resposta da Argentina à violência doméstica

Giovanna Zequim Martins
Para Trocar Ideias
Published in
10 min readJul 30, 2020

Camila Norwig Galvão

Giovanna Zequim Martins

A pandemia da COVID-19 acelerou e evidenciou inúmeros processos de desgaste das sociedades capitalistas, e um deles, que merece mais atenção do que fato recebe pelas autoridades, é o impacto do coronavírus na vida das mulheres do mundo inteiro. Nesse mês, o Para Trocar Ideias optou por destrinchar a resposta da Argentina à pandemia, longe de ser exemplar, mas uma das mais bem sucedidas na América Latina, e o texto que se segue busca elucidar como a situação histórica de vulnerabilidade das mulheres no país em questão é uma realidade em vias de agravamento e como o mesmo está lidando com o que a diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, chamou de “la pandemia en la sombra”.

A Argentina é marcada por traços histórico-coloniais de desigualdade entre os sexos, que manifesta-se, dentre outras maneiras, através da violência contra as mulheres. Com o fim da ditadura militar, houve uma maior abertura político-social que permitiu a ascensão de mobilizações que fizeram crescer as organizações não-governamentais (ONG’s), a participação de mulheres em governos e em organismos internacionais, bem como a criação de setores específicos do Estado preocupados com a pauta da violência doméstica[1]. Contudo, o corpo feminino ainda está inserido nessas marcas históricas que manifestam-se através de agressão, abuso, estupro e morte de mulheres por homens[2], situação agravada pela pandemia da COVID-19.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1994, conhecida como a “Convenção de Belém do Pará”, estabeleceu pela primeira vez o direito de toda mulher de ser livre de violência em ambas as esferas, pública e privada. Assim, em âmbito internacional, os Estados adotaram um novo paradigma dos Direitos Humanos, isto é, assumiram a responsabilidade e o dever de erradicar e sancionar as condições de violência contra as mulheres[3]. Esse evento foi a referência para a elaboração de políticas contra a violência doméstica nas Américas[4].

A Argentina adotou recomendações internacionais que permitiram a formulação de leis, como a Lei de Proteção Integral para prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres nas áreas de relacionamentos entre pessoas, e de penalidades de responsabilidade criminal. Além disso, elaborou políticas públicas, como o Plano Nacional de Ação para Prevenção, Assistência e Erradicação da Violência contra a Mulher. E no mais, a sociedade civil teve uma atribuição importante também ao reivindicar os direitos das mulheres, até então invisibilizados na esfera doméstica.

Segundo o Artigo 4 da Lei de Proteção Integral para as Mulheres (2009), a violência contra as mulheres é toda conduta, ação ou omissão baseada em relações desiguais de poder que afeta a vida, a liberdade, a dignidade, a integridade física, psicológica, sexual, econômica ou patrimonial, assim como a segurança pessoal. A violência doméstica, por sua vez, é uma forma de manifestação dessa violência que, de acordo com o Artigo 6, é

aquella ejercida contra las mujeres por un integrante del grupo familiar, independientemente del espacio físico donde ésta ocurra, que dañe la dignidad, el bienestar, la integridad física, psicológica, sexual, económica o patrimonial, la libertad, comprendiendo la libertad reproductiva y el derecho al pleno desarrollo de las mujeres. Se entiende por grupo familiar el originado en el parentesco sea por consanguinidad o por afinidad, el matrimonio, las uniones de hecho y las parejas o noviazgos. Incluye las relaciones vigentes o finalizadas, no siendo requisito la convivencia[5].

A Oficina de Violência Doméstica, criada em 2006 pela Corte Suprema de Justiça da Nação, tem o objetivo de facilitar o acesso à justiça para vítimas da violência doméstica. Dessa forma, entre 2008 e 2017, as equipes atenderam um total de 87.320 queixas, das quais 83% foram feitas por mulheres, cujo o vínculo com a pessoa relatada é um tipo casal, como casais, ex-parceiros, cônjuges, namorados e coabitantes, por exemplo[6]. A Linha 144, criada em 2013 para situação de violência de gênero, recebeu nos dois primeiros anos 60.543 ligações. Além disso, o maior volume de chamadas foi registrado no dia da marcha do “Ni Una Menos” (3 de junho de 2015) e nos dias seguintes da mobilização. De maneira que, em 2014, as chamadas variavam entre 200 e 300 mensalmente, ao passo que em junho de 2015 foram registradas 661[7]. Essa marcha tinha como objetivo alertar sobre os altos índices de violência machista que resultam em casos de feminicídios[8].

Isto posto, o Plano Nacional de Ação (2017–2019) almeja a prevenção e a atenção das mulheres em situação de violência de gênero. Em relação a prevenção, o objetivo geral é a transformação de padrões culturais que naturalizam a violência contra a mulher, visando uma sociedade de iguais. A atenção, por sua vez, está vinculada a promover e gerar espaços de atendimento integral às vítimas, como um problema público. Além disso, há três eixos transversais, preocupados com o alcance de prevenção e atenção: o treinamento contínuo, o fortalecimento institucional e o monitoramento e a avaliação de políticas públicas sobre violência de gênero[9].

Em relação à atual pandemia da COVID-19, a medida defendida pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e por outras organizações e lideranças capacitadas no que tange o combate à propagação do coronavírus é o isolamento social, no qual as pessoas que não realizam os chamados “serviços essenciais” mantêm-se confinadas em suas casas. Para muitas mulheres, no entanto, essa medida que deveria ser de proteção à contaminação acaba por expô-las à um perigo de igual ou maior magnitude: a violência doméstica. Segundo dados da ONU Mulheres[10], diversos países, inclusive a Argentina, registraram um aumento no número de denúncias de violência doméstica e de necessidade de proteção emergencial.

Isolar-se com companheiros violentos ou agressivos, distanciando-se de outros ciclos sociais e de outras atividades, como a econômica, afeta as mulheres em múltiplas esferas, tais como o bem estar, a saúde sexual e reprodutiva, a saúde mental, a capacidade de participação na recuperação social e econômica pós pandemia (ONU Mulheres), além de afetar a rede de estrutura já existente de denúncia à violência e de acolhimento e apoio às vítimas. Em termos estatísticos, nos primeiros 100 dias de quarentena foram cometidos 77 feminicídios no país, ou um a cada 31 horas, segundo a ONG Casa del Encuentro; até o momento [julho de 2020], houve um aumento de 40% nos pedidos de ajuda via telefone e uma diminuição no acesso à saúde sexual e reprodutiva para mulheres e adolescentes, que tende a intensificar dados já preocupantes de, por exemplo, gravidez na adolescência, que no país acomete 7 em cada 10 meninas, segundo Florence Raes, chefe da ONU Mulheres na Argentina.

Dado esse panorama acerca da situação histórica da violência de gênero no país bem como de seu agravamento com a pandemia da COVID-19, o que se segue agora são as medidas que estão sendo tomadas, pelos mais diversos atores, como reação a esse cenário argentino. Já de antemão, destaca-se a importância da articulação do Ministério das Mulheres, do Gênero e da Diversidade, criado recentemente pelo presidente Alberto Fernández e liderado pela ministra Elizabeth Gómez Alcorta, advogada, professora e feminista.

  1. Estado

1.1. As Linhas 144 e 137, para vítimas de, respectivamente, violência de gênero e familiar, continuam a funcionar todos os dias da semana, 24 horas por dia, além da primeira ter passado por modernizações tecnológicas e aumentos salariais. Também está funcionando ininterruptamente o Escritório de Violência Doméstica do Supremo Tribunal de Justiça da Nação, que atende presencialmente em Buenos Aires.

1.2. O Ministério das Mulheres, do Gênero e da Diversidade, em parceria com a Confederação Farmacêutica Argentina, lançou um protocolo conjunto denominado BarbijoRojo, voltado para mulheres e pessoas LGBTQ+ vítimas de violência durante o isolamento. Por telefone ou presencialmente, essas pessoas devem solicitar à farmácia uma “máscara vermelha”, e os farmacêuticos dirão que não possuem o produto e solicitarão as informações da pessoa para avisar quando o mesmo chegar. Após isso, o funcionário entrará em contato com o 911 ou com o 144 para fazer o relatório sobre a situação da vítima e receber as devidas orientações.

1.3. No início de julho, o Ministério em questão também anunciou um novo Plano de Ação Nacional de resposta à violência doméstica e de gênero para mulheres e LGBTQ+ que muda paradigmas e ações sobre o assunto para os próximos anos, pautando-se na ideia de que “el Estado tiene la obligación de dar las condiciones subjetivas y materiales para que una persona salga de una situación de violencia”. Os três principais objetivos de atuação do novo Plano dizem respeito aos casos de violência extrema (como feminicídios), à autonomia econômica das vítimas desse tipo de violência e à dimensão cultural e estrutural dessa problemática.

1.4. Além disso, desde o início da pandemia e o consequente aumento no número de casos de violência doméstica e contra a mulher, a ministra Elizabeth Gómez Alcorta tem promovido reuniões presenciais com autoridades municipais e estaduais com o intuito de orientar acerca das medidas de combate à essa violência e de explicar o que o Governo Federal tem feito a respeito. O ministério também disponibilizou dois números de telefone que funcionam 24 horas por dia nos quais governos locais podem pedir orientações sobre como agir nessas situações, um mapa interativo de fácil acesso no qual as vítimas conseguem encontrar o centro de acolhimento mais próximo de sua residência, criou ao lado do Ministério da Segurança uma resolução federal que considera os casos de violência contra as mulheres “situações de força maior”, que são tratados prioritariamente em termos de atendimento, de investigação e de resolução e firmou parceria com organizações universitárias na qual há a disponibilização de quartos de alojamento vagos a vítimas que precisam deixar suas casas durante a quarentena.

  1. Mercado

2.1. Em parceira com o Ministério das Mulheres, do Gênero e da Diversidade, o WhatsApp lançou uma linha de bate-papo emergencial e gratuita, que, diferentemente de outros meios de comunicação como a Linha 144, permite que a vítima se comunique em silêncio, sem levantar suspeitas ao violentador e fornece dicas sobre como as mulheres podem usar a linha se protegendo, por exemplo salvando o número com um nome falso. A linha funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana e no país inteiro, e parte da percepção de que “en el marco del incremento de casos violência de género, es fundamental trabajar de forma interministerial y en conjunto para acercar soluciones tecnológicas que multipliquen los canales de ayuda em el abordaje de esta problemática”, segundo Micaela Sánchez Malcolm, secretária de Inovação Tecnológica do governo argentino.

Outro diferencial dessa iniciativa é que a única resposta automática que as vítimas recebem é o primeiro contato, depois toda a assistência necessária é oferecida por colaboradores reais com experiência no atendimento da Linha 144, e a maioria capacitado por uma parceria entre o WhatsApp e a ONG norte-americana National Network to End Domestic Violence (NNEDV), que adotou os protocolos vigentes na Argentina de atenção às vítimas de violência de gênero.

2.2. Outra rede social, o Facebook, firmou parceria com a ONU Mulheres e lançou a campanha “Quedate conectada”, que parte das premissas do apoio às vítimas e da discrição, uma vez que se trata de uma série de vídeos que para um olhar desatento não passam de dicas sobre temas diversos, tal como exercícios de ginástica, mas que tratam na verdade de mensagens de conscientização e de dicas de como mulheres vítimas de violência durante a quarentena podem pedir ajuda. A campanha é resultado de dois meses de trabalho conjunto da empresa com 15 ONG’s dedicadas à luta contra violência de gênero na Argentina.

2.3. A Fundação AVON lançou a campanha #Isolatednosolas, Isolada mas não sozinha, que acompanha virtualmente a situação das vítimas de violência doméstica durante o isolamento social. A comunicação ocorre através de vídeos nos quais cozinheiros famosos ensinam receitas que após dez segundos são interrompidas e transmitem orientações e mensagens sobre como lidar com essa situação.

  1. Sociedade Civil

3.1. As organizações da sociedade civil estão se adaptando à situação atual, e para tanto destacam a importância do uso da tecnologia ao mesmo tempo que chamam a atenção para a lotação nos abrigos, um enorme agravante para as vítimas que buscam refúgio de suas casas. A Casa del Encuentro, por exemplo, que fornece aconselhamento e acompanhamento para cerca de 200 mulheres por mês, habilitou um número de telefone de emergência.

3.2. A Iniciativa Spotlight é uma aliança entre a ONU e a União Europeia cujo objetivo é a eliminação de todas as formas de violência contra meninas e mulheres, e foi lançada na Argentina em março de 2019, com foco na erradicação do feminicídio e com forte atuação com organizações nacionais que lidam com a questão, tais como a sociedade civil, o setor privado, a academia e os sindicatos. Com o aumento no número de casos durante a pandemia, o Spotlight Argentina está auxiliando no fortalecimento de serviços de monitoramento da violência contra mulheres, crianças e adolescentes; na aquisição de equipamentos para a Linha 144 e para outros centros de atendimento, além da promoção de acessibilidade de mulheres surdas à linha e no apoio à centros de acolhimento de vítimas.

Ademais, o Spotlight Argentina também está encabeçando duas campanhas de conscientização e de divulgação de informações sobre como pedir ajuda nesse tipo de situação, que levam em conta o isolamento social e que são difundidas em diferentes plataformas de todas agências, fundos e programas da ONU no país. Uma delas é a “Portas Internas”, que explica sobre o funcionamento da Linha 144 e outra é “Não Lave as Mãos”, que mostra a aterrorizante situação de inúmeras mulheres no país durante a quarentena.

Diante dos fatos apresentados, que compreendem um panorama histórico da questão de gênero na Argentina e sua subsequente exacerbação em decorrência do isolamento social necessário durante a pandemia da COVID-19, é possível depreender que, dentro do possível, o país apresentou uma resposta rápida em relação à “outra pandemia”, demonstrando a eficiência de uma articulação entre os setores do Estado, do mercado e da sociedade no que diz respeito ao combate à violência doméstica e de gênero.

[1] COLOMBARA, Mónica. 2019.

[2] COSTA, Caroline R. 2019.

[3] BANDEIRA, Lourdes M.; DE ALMEIDA, Tânia M. C. 2015.

[4] ROJO, Fiorella. 2019.

[5] EL SENADO Y CÁMARA DE DIPUTADOS DE LA NACIÓN ARGENTINA. 2009.

[6] CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE LA NACIÓN (Argentina). Oficina de Violencia Doméstica. Estadísticas 2008–2017 Denuncias de mujeres afectadas. 2018.

[7] UNESCO. 2018.

[8] COSTA, Caroline R. 2019.

[9] UNESCO. 2018.

[10] ONU Mulheres. 2020.

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