A retórica e a prática da resposta

Para Trocar Ideias
Para Trocar Ideias
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5 min readJul 30, 2020

Felipe Jukemura

Em meio a mudanças estruturais que estão a ocorrer no mundo em que vivemos, ideias atreladas a políticas públicas e econômicas, relações internacionais ou mesmo a sociedade têm sofrido alterações na maneira como são entendidas, e é nesse contexto que a pandemia do COVID-19 surge, acentuando essas mudanças e colocando em destaque os pontos positivos e negativos da maneira como os atuais governos tem encarado o mundo. Dentro desse cenário proponho então uma análise da maneira como a Argentina tem dado sua resposta frente a crise corona vírus. Para tanto, buscarei apontar como ela tem se colocado internacionalmente, seja na 73a Assembleia Mundial da Saúde, ou em uma live realizada pela Universidade de Buenos Aires, e como esse discurso reflete as práticas adotadas pelo governo.

Antes de passar efetivamente para o estudo do caso argentino é importante salientar alguns pontos que tornam esse país especialmente interessante para ser analisado, o primeiro deles reside no fato de ser um país cujas diretrizes político ideológicas divergem daquilo que tem se apresentado cada vez mais entre seus pares latino-americanos, um pensamento liberal conservador. Um segundo ponto, está atrelado a ideia de que depois de mais de quatro meses do primeiro caso confirmado na Argentina, que no início ela era tomada como um modelo dentro da América Latina para ser seguido agora, com o desenvolver da crise, já encontra alguns problemas na gestão da pandemia em seu território. E, por fim, um último ponto que gostaria de colocar, se dá uma vez que, apesar de hoje já termos uma melhor ideia de como se porta o presidente Fernández, o início de seu mandato era permeado de dúvidas referentes a maneira como ele governaria, pois, apesar de peronista, não se era certo se ele seria um peronista “clássico” como o próprio Perón, se seguiria um peronismo neoliberal como no governo de Menem ou progressista, como no de Kirchner e foi, somente durante a crise, com ações e discursos, que passou a se compreender que posição ele se encontrava.

18 de maio de 2020, a Argentina contabilizava 7805 casos de infecção por corona vírus e 366 mortes, de acordo com dados da OMS, concomitantemente começava a 73a Assembleia Mundial da Saúde e é com a frase cooperativa “nadie se salva solo” que o representante da Argentina começa seu discurso, reconhecia-se assim o caráter transnacional dessa pandemia e a necessidade de uma resposta multilateral. Parte do reconhecimento desse caráter transnacional levou a algumas medidas de controle daqueles que ingressavam no país, como um alerta epidemiológico ou mesmo medidas de monitoramento de entrada no país logo no início da crise, e, posteriormente o fechamento de fronteiras. Contudo, mais interessante de se notar dentro dessa perspectiva de que “nadie se salva solo” é o símbolo da cooperação, uma das medidas adotadas dentro desse espectro foi a participação no “Solidarit”, estudo clínico internacional para ajudar a encontrar um tratamento eficaz para o COVID-19, lançado pela Organização Mundial da Saúde e parceiros.

Entende-se então com essas poucas palavras, bem como na ação, como busca-se o conhecimento em escala global para uma resposta ao vírus te tal modo que ela se faça acessível a todos, colocando a saúde acima de interesses comerciais, sendo tal ideia salientada na posição da Argentina na resolução sobre COVID-19, em que seu representante afirma “Como paso inicial, debemos identificar y remover todas las barreras de acceso a tecnologías sanitarias, en especial, aquellas ocasionadas por el efecto de los derechos de propiedad intelectual sobre los precios”.

Não obstante, foi salientado que a resposta não ocorreria de maneira somente global, mas está deveria estar em consonância com respostas locais, pois o problema trespassava não somente barreiras, mas mesmo áreas que por vezes podem ser vistas como sendo separadas, saúde, economia etc. Dessa maneira a Argentina trouxe à tona necessidade de resposta multisetorial no combate ao corona vírus, como o exemplo do próprio governo na decisão administrativa 497/2020, que cira a “Unidad de Coordinación General del Plan Integral para la Prevención de Eventos de Salud Pública de Importancia Internacional” que, apesar de liderado e coordenado pelo ministro da saúde é composta pelos representantes do ministério da economia, do desenvolvimento produtivo, do interior, do emprego e segurança social, relações exteriores, dentre outros. 19 de maio de 2020, a Argentina contabilizava 8068 casos de infecção por corona vírus e 373 mortes, de acordo com dados da OMS, encerrava a 73a Assembleia Mundial da Saúde.

26 de junho de 2020, a Argentina contabilizava 49851 casos de infecção por corona vírus e 1124 mortes, de acordo com dados da OMS, nesse dia também acontecia um diálogo virtual promovido pela Universidade de Buenos Aires para se pensar os rumos da América Latina após a pandemia de corona vírus. Dentre os ilustres convidados se encontravam, dentre outros, o ganhador do Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, o presidente da Argentina Alberto Fernández. Fechando o evento, o professor e presidente, começa uma vez mais reforçando que essa não é uma crise que pode ser encarada como somente um problema de saúde e, citando o escritor Alberto Camus, diz que as pestes, ou pandemias tem uma característica muito clara “le arrancan la vida a la gente, pero además, dejan al descubierto la miseria de las almas”. Contudo, apesar de insistir que é um falso dilema ter que escolher entre a economia e as vidas, o caráter econômico passa a estar mais presente no discurso do presidente. Assim, alerta que estamos fazendo listas e listas de número de mortes, mas, por vezes, estamos esquecendo como “um vírus imperceptível” derrubou o sistema capitalista financeiro tal qual o conhecíamos, onde nada vale hoje o que valia antes da pandemia, demonstrando a importância do trabalhador e da pessoa.

É nesse sentido então que o governo buscou medidas de proteção a saúde dos seus cidadãos, fosse pelo “Fondo Nacional de Equidad” ou pela incorporação de mais médicos, leitos hospitalares, respiradores etc. no sistema de saúde. Mas, para além disso, visando o outro lado da crise e, buscando não acentuar ainda mais as desigualdades sociais anteriores à pandemia, promoveu programas de auxílio a essa população mais vulnerável, fosse, por exemplo, na oferta de infraestrutura (Programa Nacional de Reactivación y Terminación de Obras de Vivienda, Infraestructura y Hábitat), na extensão do prazo de pagamento de impostos ou na assistência a pessoas jurídicas para favorecer a reativação produtiva (Programa Soluciona. Reactivación de la economía del conocimiento). Tais medidas de fato, e como salienta o próprio presidente, tem custado muito aos cofres públicos, mas, em sua visão se fazem valer visto que esse dinheiro, ele crê, será recuperado, mas o mesmo não pode ser dito de vidas.

Concluo por fim com uma frase proferida pelo presidente Fernández na live que participou, pois creio que sintetiza a maneira como ele viu essa crise, e a partir de como ele está se guiou para dar sua resposta a ela: “La pandemia lo único que me dejo en evidencia es que el capitalismo tal como lo conocemos no tiene sentido que sigue existiendo, tal como lo conocemos es profundamente desigual, tal como lo conocemos deja a margen de la sociedad millones de compatriotas. Y como nosotros creemos que la política es una acción ética, nadie puede hacerse el distraído de semejantes números”.

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