A sobreposição entre os interesses estatais e empresariais: o caso da Vale em Moçambique

Giovanna Zequim Martins
Para Trocar Ideias
Published in
5 min readOct 5, 2020

Diferentemente da divisão que Habermas propõe, segundo a qual há uma autonomia entre o Estado, o mercado e a sociedade civil, o que se vê no capitalismo é um entrecruzamento entre essas esferas. A unidade histórica do Estado-nacional sempre esteve em disputa e tendeu a representar os interesses particulares das elites, fazendo-se presente, em maior ou em menor grau, a sobreposição entre as elites econômica e política nos arranjos nacionais, e na atualidade isso não é diferente: os Estados estão intrinsicamente relacionados tanto com a sociedade civil quanto com o mercado, constituindo uma relação particularmente promíscua com a última, especialmente em um contexto de globalização e de abertura para a atuação de grandes corporações transnacionais, que em alguns casos apresentam receitas mais altas que o Produto Interno Bruto (PIB) de países.

Pensando na correlação institucional acima apresentada, pretendo analisar brevemente a atuação da Vale, empresa privada brasileira, em Moçambique. A multinacional adentrou no país a partir da Cooperação Sul-Sul entre o Brasil e o continente africano, cooperação essa que reservou uma generosa parcela de suas ações para a iniciativa privada, o que retoma a tese colocada: os interesses do Estado estão, em grande medida, alinhados aos das grandes empresas. Apesar da retórica brasileira de solidariedade, de desenvolvimento e de redução das desigualdades quando se trata desse tipo de cooperação, a atuação da Vale tem estado distante desse ideal, representando para o Estado moçambicano ganhos econômicos, mas para a população e para a sociedade civil moçambicana enormes violências.

Os interesses das Corporações Multinacionais (CMN’s) ocupam um local de prioridade na agenda dos Estados — sejam eles desenvolvidos ou em desenvolvimento. No caso do Brasil, a Cooperação Sul-Sul permitiu uma ação direta do interesse privado em projetos de cooperação e foi a responsável pela internacionalização da Vale. Isso demonstra que, apesar do discurso Sul-Sul de cooperação fortemente cunhado no altruísmo, encabeçado pelo país-sede da mineradora, essa concepção ideal esbarra na prática da inserção de interesses econômico-capitalistas nesse tipo de ação internacional. Os interesses do Brasil e da Vale, nesse caso específico, se mostraram muitíssimo alinhados, mostrando como o Estado serve, antes de tudo, as grandes corporações.

E se por um lado o Brasil encontra-se alinhado com a Vale, não é diferente com Moçambique. Apesar de todos os impactos sociais da atuação da CMN, a mesma continua atuando e expandindo seus empreendimentos e em algumas localidades, inclusive, chega a substituir um papel que deveria ser do Estado, através da formulação de leis e diretrizes ou da geração de empregos. Diante de um contexto internacional de enorme liberalização econômica, que pressiona as autoridades nacionais a flexibilizarem suas leis e regulamentações como forma de atrair investimentos externos e “desenvolvimento” nacional — entre aspas porque os ganhos acabam nas mãos de poucos grupos — acabam beneficiados por essas ações, por exemplo, megaprojetos promovidos por CMN’s, como é o caso da Vale.

Nos anos 90, Moçambique passou pelo Programa de Reabilitação Econômica (PRE), em um cenário de submissão aos empréstimos de ajuda estrutural do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Com isso, criou-se uma elite político-econômica promotora de investimentos externos diretos (IED) e um Estado pouco regulamentador, criando um quadro paradoxal na “economia política contemporânea do país: apesar de o crescimento econômico entre a década passada e 2016 ter girado em torno dos 7% e a inflação ter se mantido controlada (dois dos mais importantes indicadores macroeconômicos), a desigualdade tem-se acentuado nos últimos 6 anos e estima-se que mais de 50% da população viva com menos de 1 dólar americano por dia” (LAMAS, 2018, p. 109–110).

Apesar de a Vale ter contribuído para o melhoramento dos indicadores macroeconômicos moçambicanos, representando em 2017 3,5% do PIB e 20,6% dos recursos governamentais, os impactos sociais foram danosos aos residentes nas áreas de atuação da mineradora, podendo-se apontar a pouca geração de emprego e a precária conexão com o local. Aqueles que realmente se beneficiaram foram o mercado financeiro, atraído pelas liberalizações e pelo abundante mercado de carvão em Moçambique, e as elites locais, restando à população a destituição de seu meio de sobrevivência e a contaminação de seus recursos naturais, com a expropriação de terra e da água para a subsistência desses povos.

Para se operacionalizar os megaprojetos da Vale, inúmeras famílias precisam ser realocadas (segundo dados do Human Rights Watch de 2013, 1365 famílias foram removidas involuntariamente entre 2009 e 2010), e a própria CMN se comprometeu com esse reassentamento, ao passo que pouca ou nenhuma fiscalização acerca de como este processo se deu foi realizada por parte do Estado. As principais ressalvas dos locais em relação aos reassentamentos são: a separação de comunidades, o fornecimento de terras inférteis para agricultores e o estabelecimento de comunidades ribeirinhas em locais com falta d’água. Além disso, comunidades que não são reassentadas, mas que vivem em áreas de atuação da Vale, sofrem com poeira, ruídos e contaminação da água diariamente.

É importante ressaltar que essa situação é resultado de uma nova governança global, na qual há a sobreposição entre o Estado e as grandes empresas, com o primeiro ocupando o papel de criador e de fornecedor de mecanismos que concretizam os interesses corporativos. Ademais, é preciso destacar também que a Vale segue as orientações do Banco Mundial sobre reassentamentos, evidenciando o não-protagonismo que a questão social ocupa não só nas Instituições Financeiras Internacionais (IFI’s) como também no capitalismo como um todo. Em termos domésticos, o Plano de Ação Para o Reassentamento (PAR) é resultado das diretrizes conjuntas do Estado moçambicano e da Vale, exemplificando a realidade da presença de CMN’s inclusive na formulação de leis, tradicionalmente uma área de escopo público. Como colocado por Lamas (2018, p.114)

Em 2012, o conflito entre a Vale e os/as reassentados/as foi marcado por uma ação de repressão violenta da Força de Intervenção Rápida (FIR) dentro da área de reassentamento a manifestações que reivindicavam aspectos problemáticos do processo de remoção involuntária através do bloqueio da linha férrea que liga a vila de Moatize ao porto da Beira. O envolvimento da Vale com o financiamento da unidade da FIR próxima à área de reassentamento, bem como com a manutenção do posto policial comunitário até os dias atuais (SoCiv-Mo-13) evidenciam como os aparatos de segurança do estado trabalham em sinergia com o da CMN para proteger o investimento e garantir o fluxo contínuo dos recursos, outra característica central do “complexo dos recursos” em Moçambique.

Esse é um caso ilustrativo da ideia apresentada aqui de que não há uma distinção clara entre o Estado e as empresas, e os interesses desses atores em muitos casos se sobrepõe, e muito mais do que isso, colocam em segundo plano as necessidades das populações, evidenciando a necessidade de criação de uma sociedade civil articulada e vigilante — a questão dos impactos sociais da Atuação da Vale em Moçambique só se tornou público graças à ação de ONG’s nacionais e internacionais e a criação de uma rede de mobilização dos locais.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Elga Lessa de e KRAYCHETE, Elsa Soares. O Discurso Brasileiro Para a Cooperação em Moçambique: Existe Ajuda Desinteressada?

LAMAS, Isabelle Alves. VALE QUANTO PESA? A Emergência de Novos Espaços de Governação em Megaprojetos de Mineração no Brasil, Canadá e Moçambique.

--

--