O caráter predatório do capitalismo a partir dos lixões a céu aberto em países periféricos: superexploração, racismo e ecocídio

Para Trocar Ideias
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8 min readSep 4, 2020
(Christophe Simon/AFP/Getty Images)

Fernanda Rocha Banyan de Oliveira

O atual modo de produção internacional é baseado no desenvolvimento de uns à custa de outros, de modo a servir principalmente à classe dominante dos países centrais, enquanto há exploração dos trabalhadores internacionalmente, e de forma mais aguda nos países periféricos do sistema. A existência de espaços como lixões a céu aberto nestes países escancara a quem serve e a quem oprime o desenvolvimento tecnológico e de produção do capitalismo, sendo o descarte de lixo nos países subdesenvolvidos uma grande expressão do caráter predatório e exploratório do modo de produção mercantil global diante da natureza e da classe trabalhadora majoritariamente negra.

Uma vez que, no capitalismo, a produção não se dá de acordo com as necessidades sociais e demandas reais da população, mas sim de acordo com a lógica de acumulação de capital, na extração da mais valia no momento da venda do produto, na necessidade absoluta em converter mercadoria em dinheiro, na procura de pagamento, o que se tem é uma produção cada vez mais extrativista e expansionista. Há então junto a esse desenvolvimento da produção, um descarte desenfreado e a descarga massificada de resíduos de mercadorias, ou seja, uma produção também expansiva de lixo.

Nos países da periferia do capitalismo, principalmente na América Latina e no Caribe, o descarte de lixo produz, historicamente, espaços chamados lixões a céu aberto, nos quais os resíduos são somente descarregados sobre o solo, sem qualquer medida de tratamento e de proteção ao meio ambiente e à saúde da população. No Brasil, quarto maior produtor de lixo mundialmente atrás dos Estados Unidos, China e Índia, 40,5% do lixo coletado no país, ou seja, aproximadamente 29,5 milhões de toneladas de resíduos, é destinado a lixões a céu aberto ou aterros irregulares, de acordo com dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Ainda, de acordo com a Abrelpe, o Brasil atualmente possui 2.970 lixões a céu aberto em funcionamento, sendo o Nordeste a região com mais da metade (57%) dos lixões do país.

A partir disso, 400 mil trabalhadores no Brasil habitam diariamente os lixões a céu aberto e comercializam os resíduos para sobreviverem, caracterizando a existência de um trabalho extremamente precarizado num país subdesenvolvido, sendo essa uma condição de funcionamento para o desenvolvimento mercantil global. De acordo com o intelectual, militante latino-americano e um dos formuladores da teoria marxista da dependência, Ruy Mauro Marini, os países periféricos têm a produção interna voltada para os países centrais do sistema, eles dependem da exportação da produção interna para os países centrais, e direcionam parte da mais-valia às economias centrais, em troca de acesso aos mercados mundiais e às tecnologias avançadas.

Assim, a burguesia agro mercantil latino americana é subordinada à burguesia dos países centrais do capitalismo, de forma que possuem relações de produção pautadas pela dependência. Com isso, os salários dos trabalhadores se mantêm baixos na periferia, de modo que nesses países não se precisa do consumo dos trabalhadores para o mercado de commodities ser realizado, e a burguesia local passa a tentar compensar a perda de mais-valia, que é drenada às economias centrais, superexplorando os trabalhadores rurais e urbanos. Essa superexploração, segundo Marini, sustenta o capitalismo imperialista mundial, de modo que o subdesenvolvimento seja uma condição para o sistema:

“O desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região coadjuvar esta mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á, fundamentalmente, com base numa maior exploração do trabalhador. É este caráter contraditório da dependência latino-americana que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista o qual deve reter nossa atenção.” (Marini, 2000, p.113)

Com isso, a acentuada exploração e precarização do trabalho e da vida nas periferias do sistema, gerada pelo caráter contraditório do capitalismo global, se observa no fato dos catadores de lixo serem uma comunidade de risco em termos de saúde pública, uma vez que são expostos a uma alta vulnerabilidade socioambiental-sanitária. Como demonstra o artigo “Acidentes de trabalho e condições de vida de catadores de resíduos sólidos recicláveis no lixão do Distrito Federal”, publicado pela Revista Brasileira de Epidemiologia,os catadores sofrem com o crescente aumento do número de acidentes de trabalho, como mordidas de cães e ratos, picadas de insetos, atropelamento e prensagem por veículos transportadores de lixo, cortes, perfurações, dermatites, queimaduras, intoxicação alimentar e doenças parasitárias.

(Agência O Globo / Jorge William)

Dessa forma, o desenvolvimento tecnológico e de produção nos marcos da lógica do capital, da produção pela produção, de uma produção e consumo cada vez mais ampliado, não é voltado para as necessidades humanas reais, pelo contrário, contamina e explora a maioria dos humanos, uma vez que o descarte proporcional à toda essa produção e suposto desenvolvimento é despejado na classe trabalhadora periférica do capitalismo, que passa a ter uma vida marcada pela contaminação e superexploração em meio ao lixo. Assim:

“Todos os progressos da civilização ou, em outras palavras, todo aumento das forças produtivas sociais […] não enriquecem o trabalhador, mas o capital; em consequência, só ampliam o poder que domina o trabalho; só multiplicam a força produtiva do capital. Como o capital é a antítese do trabalhador, tais progressos aumentam unicamente o poder objetivo sobre o trabalho.” Karl Marx, Grundrisse (trad. Mario Duayer e Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 241

Além disso, a disposição espacial dos lixões em países subdesenvolvidos e a caracterização da classe trabalhadora necessitada de comercializar o lixo para sobreviver no Brasil, evidenciam o caráter racista do desenvolvimento capitalista. O Nordeste é a região com mais da metade (57%) dos lixões do país. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os catadores de lixo no Brasil são em sua grande maioria homens jovens, negros ou pardos, com baixa escolaridade, de renda média de R$ 571,56, urbanos e com filhos dependentes. A população negra e parda entre os catadores de lixo no Brasil é de 66,1%, sendo maior do que a média nacional de todas as regiões do país, e principalmente no Norte e Nordeste, a atividade de catador é essencialmente exercida por negros e pardos; Amapá 85,7%; Bahia 84%, Salvador 92% e em Catu, cidade no Recôncavo Baiano, 94%.

Assim, pensar no caráter racista do desenvolvimento capitalista por meio da atual precarização e exploração da classe trabalhadora, dos catadores de lixo, nos país subdesenvolvido e dependente, perpassa pensar na própria dinâmica de estabelecimento do capitalismo. O racismo foi condição da formação, expansão e mantimento do modo de produção mercantil, como aponta Marx (2013), a partir do processo de colonização:

“A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras que caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva.[…] na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal”

Logo, o desenvolvimento mercantil se deu a partir da escravização da população negra nos países não centrais na colonização, e se dá atualmente a partir da superexploração da população negra, da escravidão assalariada moderna, nos países não centrais. Conjuntamente a isso, o desenvolvimento se deu também a partir da exploração do ecossistema dessas colônias, na relação predatória com a natureza com a extração de matéria prima e se dá atualmente também com a devastação ambiental dos países subdesenvolvidos. Assim, o caráter racista da produção sistêmica de lixo, e a disposição espacial internacionalmente (países periféricos) e regionalmente (especialmente no Nordeste no caso do Brasil) pautam a injustiça ambiental racista do dito desenvolvimento, sendo essa injustiça :

“O mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa renda, grupos raciais discriminados, populações marginalizadas e mais vulneráveis” (Herculano, 2008, p. 2.).

A produção massificada de lixo contamina a água, o solo, a atmosfera, a fauna e a flora desses espaços de lixões nos países subdesenvolvidos, destruindo o meio ambiente em escala internacional. Esses danos ambientais contaminam a população local, trabalhadores majoritariamente negros de baixa renda, além de contaminar também os que consomem água ou alimentos que vêm dessa área, totalizando no Brasil em aproximadamente 95 milhões de pessoas afetadas pelos lixões, de acordo com a Abrelpe. Diante disso, como aponta o pensador e militante marxista dirigente da IV Internacional, Michael Löwy, a estrutura do aparelho de produção capitalista, o desenvolvimento da tecnologia industrial moderna, não é neutro, ele funciona para a expansão do mercado, portanto contra a preservação da natureza, o equilíbrio ecológico e a saúde dos trabalhadores, agravando a poluição, devastando florestas, destruindo a biodiversidade e adoecendo a força de trabalho. Portanto, o desenvolvimento pautado pelo capitalismo atua de forma suicida com a natureza e humanidade, sendo expresso, no caso, pela existência de lixões, e é responsável por um crescente esgotamento dos ecossistemas dos países periféricos e do mundo, e consequentemente por um crescente adoecimento e exploração dos trabalhadores negros de baixa renda do Terceiro Mundo.

Sendo assim, se evidencia nos lixões a céu aberto, como o desenvolvimento tecnológico e de produção nos marcos do capitalismo pressupõe a desigualdade ao passo que serve ao lucro, enquanto devasta a natureza e explora a classe trabalhadora majoritariamente negra, principalmente dos países subdesenvolvidos, sendo características e condições históricas do modo de produção mercantil. Assim, um desenvolvimento autêntico só pode se dar para além de um modelo de sociedade exploratória e predatória dedicada à maximização do lucro. Só pode se dar, portanto, numa sociedade em que a produção e os objetivos de produção sejam decididos e voltados para as necessidades sociais reais e em respeito a natureza e ritmo humano, em que o poder público seja uma ação compartilhada e democrática e não o poder de uns sobre outros de forma estatizada, em que haja unidade e equilíbrio entre humano e natureza:

“Se a raiz é o sistema capitalista, precisamos de alternativas antissistêmicas, ou seja, anticapitalistas — como o ecossocialismo, um socialismo ecológico que esteja à altura dos desafios do século XXI. […] O ecossocialismo é tanto um projeto para o futuro como uma estratégia para a luta aqui e agora.[…] é necessário estimular a convergência entre as lutas sociais e ecológicas e combater as iniciativas mais destrutivas dos poderes a serviço do capital. […] É dentro de mobilizações deste tipo que a consciência anticapitalista e o interesse pelo ecossocialismo podem emergir nas lutas.[…] As forças que hoje estão na linha de frente do confronto são os jovens, as mulheres, os povos indígenas, os camponeses. […] A primeira condição é, em cada movimento, combinar objetivos ecológicos (fechamento de minas de carvão ou poços de petróleo, ou centrais termoelétricas etc.) com a garantia de emprego para os trabalhadores envolvidos.” (Michael Löwy, 2020).

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