O papel do Estado: entre a retórica e a veracidade

Giovanna Zequim Martins
Para Trocar Ideias
Published in
5 min readJun 26, 2020

Ainda que na história mais recente o mundo tenha assistido ao surgimento de novas esferas de poder, é fato que o Estado mantém sua posição basilar no capitalismo moderno. Digo isso porque partirei de uma Sociedade Internacional na qual, ainda que haja o compartilhamento de valores e a formulação de normas internacionais, os Estados nacionais continuam a ser protagonistas de suas decisões, podendo ratificar ou não, domesticamente, o que foi acordado internacionalmente. Tendo isso em vista, pretendo aqui discutir um aspecto específico acerca do papel do Estado: a contradição por ele processada entre as normas e as ações internacionais, de maneira que as medidas que estes tomam os afastam progressivamente daquilo que eles mesmos almejaram. O que nos leva a questionar, qual afinal é o papel do Estado?

Trabalharei um único exemplo de contrassenso estatal: a disparidade entre a efetivação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU e a noção de expulsões trazida pela socióloga Saskia Sassen em livro de mesmo nome. Isso porque, em ambos os casos, o papel do Estado é fundamental, mas completamente oposto: no primeiro, os Estados-membros da ONU concordaram com os 17 princípios da Agenda, no entanto no segundo, perpetuaram um modelo capitalista cada vez mais excludente e desigual, que culmina na eliminação de uma significativa parcela mundial do sistema capitalista.

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável foi proposta e aceita por todos os países membros da ONU, como consta na Introdução da mesma, em setembro de 2015. Os 17 objetivos presentes são o resultado de mais de dois anos de consulta pública e de envolvimento com a sociedade civil, especialmente para com aqueles mais vulneráveis, como também consta no tópico 06 da mesma seção. No Preâmbulo, o texto apresenta os grandes mobilizadores das propostas que se seguirão: as pessoas, o planeta, a prosperidade, a paz e a parceira. Com esse apanhado geral, gostaria de transcrever em seguida duas passagens de suma importância, que dialogam profundamente (mas não consonantemente) com a realidade propagada pelos Estados.

Reconhecemos que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, é o maior desafio global e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável. Estamos empenhados em alcançar o desenvolvimento sustentável nas suas três dimensões — econômica, social e ambiental — de forma equilibrada e integrada. (TÓPICO 2, INTRODUÇÃO, AGENDA 2030 — ODS)

Nós resolvemos, entre agora e 2030, acabar com a pobreza e a fome em todos os lugares; combater as desigualdades dentro e entre os países; construir sociedades pacíficas, justas e inclusivas […] resolvemos também criar condições para um crescimento sustentável, inclusivo e economicamente sustentado, prosperidade compartilhada e trabalho decente para todos. (TÓPICO 3, INTRODUÇÃO, AGENDA 2030 — ODS)

O livro Expulsões, de Saskia Sassen, apresenta a percepção da autora acerca do que seria uma nova etapa de desenvolvimento da economia global, com o crescimento da riqueza acompanhado do recrudescimento das políticas distributivas, que tem como consequência um progressivo aumento da desigualdade social. Esse sistema moderno, cada vez mais complexo, porém cada vez mais precário, produz o que Sassen classifica como brutalidades, que são formas globais e sistemáticas de expulsão, que permeiam transnacionalmente a formação de todo e qualquer espaço da globalização. O que há hoje, diferentemente do capitalismo pós Segunda Guerra, no qual os países viveram sobre à égide do sistema Bretton-Woods, com a tentativa de criação de Estados de bem-estar social, é um regime econômico de extremos, no qual a desigualdade de renda só aumenta.

Segundo o relatório “Tempo de Cuidar — O trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global de desigualdade” de 2020 da Oxfam, “os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas — ou cerca de 60% da população mundial”. Enquanto os mais ricos enriquecem às custas dos mais necessitados, o “precariado” se torna a realidade de cada vez mais pessoas e se engana quem acredita que essa realidade é resultado da omissão do Estado. Na verdade, como argumenta Sassen, esse fenômeno é fruto do novo papel que foi atribuído ao Estado, potencializado nos anos 90. Em linhas gerais, com o fim da Guerra Fria, o capitalismo mundial passou por uma reestruturação sustentada sobretudo na desregulamentação da economia, com privatizações e reduções tarifárias; o acordo entre a Casa Branca e Wall Street tornou-se política pública para um enorme contingente de países, em um processo que ficou conhecido como Consenso de Washington.

Essa nova fase do capitalismo é caracterizada pela “contração excessiva”, na qual as despesas governamentais devem ser cortadas ao máximo: “Em termos populacionais, a austeridade iria afetar […] 6,3 bilhões de pessoas no mundo inteiro em 2015, ou 90% da população global” (SASSEN, 2014, p. 34). Isso afeta primeiramente as “bordas” do sistema capitalista, aquela parcela que já era marginalizada anteriormente, mas que agora se vê expulsa desse sistema. A classe média também vai gradualmente desaparecendo, conforme os direitos trabalhistas vão se esvaindo, as condições de acesso e de trabalho se deteriorando e a renda se concentrando cada vez mais. São mais comuns os processos de financeirização e de securitização, bem como a criação do que a autora chama de “zonas extremas”, que materializam o desnivelamento que essa nova fase da globalização produz: as cidades globais e os espaços para o trabalho terceirizado, que concentram em si esses fenômenos sistêmicos.

Levando em consideração a realidade apresentada, há de se considerar factível o distanciamento entre a teoria e a prática. De fato, os Estados se comprometeram com a Agenda 2030? Ou antes os mesmos já haviam se comprometido com esse novo mercado da globalização, cujos interesses não são exatamente aqueles expressos nas 17 metas do Desenvolvimento Sustentável? Isso nos leva a questionar: qual é o papel do Estado? O papel é de sustentar o capitalismo, imbricados um no outro em um processo mutualístico (HARVEY, 2003), mas em quais condições? Às custas da exclusão de um enorme contingente populacional?

O regime de Bretton Woods foi acordado pelos Estados, mas em certa medida foi uma conquista do povo. A garantia normativa de direitos é uma conquista, tal qual a Agenda 2030. Conquistar no âmbito formal é muito, mas não é o suficiente. O Estado tem um papel definido, que faz parte de sua estrutura fundante, mas as condições nas quais ele realiza sua função também podem ser moldadas pela população, basta ela compreender a força que tem. Assim, finalizo o texto confirmando o pressuposto de que a organização atual dos Estados-nação é falha, e atende aos interesses de grupos específicos, mas essa correlação de forças não precisa ser uma inevitabilidade, há muito que as pessoas podem conquistar para que o Desenvolvimento Sustentável não seja só mais uma retórica de Estados excludentes.

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