Para Trocar Ideias
Para Trocar Ideias
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8 min readJun 8, 2020

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O Papel, em trânsito, do Estado

Pensar o Estado ou seu papel é uma árdua tarefa, pois, antes de mais nada, temos que compreendê-lo como constitutivo e constituído de inúmeros elementos da realidade social que se entrelaçam e mesmo se confundem, em especial tem-se dois que gostaria de ressaltar enquanto de suma importância: as pessoas que nele se encontram e a sociedade interestatal na qual ele está. Dados esses dois fatores é possível entender o Estado enquanto uma forma de ordenamento político que tem seu surgimento em função de um processo histórico, não sendo algo etéreo, então, dadas novas circunstancias, atores e problemas que se apresentam, ele tem que se “reinventar”, passando de formas como o “Estado de bem-estar social”, para “Estados totalitários” ou “Estados democráticos de direito”.
Assim, a reflexão que aqui proponho será a de pensar, primeiramente, o Estado e suas funções, objetivando não restringi-lo em demasia, presando, desse modo, por uma visão mais “genérica”, em seguida, passar brevemente por algumas formas pelas quais ele se organizou nos últimos anos para, por fim, propor uma discussão sobre quais seriam os princípios inalteráveis dos Estados para a resolução dos problemas que eles enfrentam hoje.
“Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Ele é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”, a concepção quase uníssona de Weber sobre o Estado é de grande ajuda para se pensar a função do mesmo. A partir dessa violência, por exemplo que ele consegue garantir a propriedade privada, função atribuída ao Estado por Locke, ou nessa violência que reside o poder do Estado Leviatã, garantidor da vida, para Hobbes. Contudo, é interessante juntar a essa análise alguns outros fatores, pois o Estado não é somente, (quando o é), detentor dessa força física, ou desses instrumentos de coerção, ele resulta em última análise, assim como pensou o filósofo Pierre Bourdieu, da concentração de diferentes tipos de capitais, como o econômico, de instrumentos de coerção, o cultural, o simbólico etc. e é nessa concentração que o Estado se coloca como detentor de um “metacapital” com poder sobre todos os outros, e, por consequência fica sob sua égide um poder sobre a taxa de câmbio entre eles e sobre as correlações de força entre seus detentores.
Como já mencionado anteriormente o Estado existe em relação recursiva com sua “nação” e, portanto, para existir ele precisa constantemente se legitimar perante a mesma, é justamente nessa necessidade de legitimação perante o povo que se começa a desenhar o papel do Estado. É preciso então reconhecer que o povo, a nação, não é um corpo homogêneo, cujos interesses coincidem, ele é formado por diferentes classes e atores cujas aspirações com o Estado em muito divergem, portanto, o Estado deve garantir a difícil harmonia entre essas classes, em especial entre uma sociedade burguesa e o proletariado. Cada uma delas terá seus anseios em certa meditas atendidos e cristalizados em duas formas de estado que hoje coexistem, o Estado de direito (principalmente nos direitos civis) e o Estado social. Nessas formas, a primeira vai construir um muro contra a intervenção estatal, ou seja, delimitar-se-á o limite da ação do Estado, ao passo que a segunda representa as funções que recaem sobre o Estado quando se pensa em participação no poder político e mesmo na distribuição das riquezas produzidas.
Apesar de tentadora a ideia de querer simplesmente suprimir uma dessas classes e se ater somente a segunda, não se pode esquecer que historicamente a um progressivo empobrecimento do Estado, pois, como outrora, ele não consegue mais buscar recursos no patrimônio do próprio “príncipe”, ou seja, Estado e propriedade se separaram o que gera uma dependência fiscal dele à sociedade, em especial à burguesia. O que se chegou como solução foi o conhecido Estado Fiscal, uma possível síntese entre o Estado social e o Estado de direito, pois apregoa uma estrutura onde, por meio de impostos, pode exercer duas de suas principais funções, a garantia da propriedade privada por manter inalterada a estrutura da propriedade e, concomitantemente, dispõe de capital para a distribuição de renda para a resolução de tantos outros problemas socias.
Até agora a resposta que apresento não é nem de longe satisfatória sobre a função do Estado, visto que não se está colocada até que ponto, por exemplo, o Estado pode entrar com impostos para prover respostas as mazelas sociais? Ou mesmo se esse deve colocar-se como único ator capaz de resolvê-las, uma vez que como está em seu poder o câmbio de diferentes capitais ele pode conferir a terceiros essa tarefa. Para pensar essas questões colocarei em linhas gerais dois modelos que serviram de inspiração para grande parte dos Estados que hoje temos pelo mundo, o primeiro seria um de estado mínimo dentro do modelo neoliberal, cujo pensamento que aqui trabalharei vem do economista Milton Friedman em seu livro “Capitalismo e Liberdade” e o segundo o estado de bem-estar, com referência para a obra do pensador e economista Gunnar Myrdal, no livro “O Estado do futuro”.
Comecemos então com as funções do Estado dentro de um modelo que busca ao máximo a limitação dele. Nesse modelo proposto por Friedman e tantos outros defensores do neoliberalismo, é de competência estatal aquelas funções regulatórias que, em teoria, promoveriam a ampliação da cumulação do capital, para essa tarefa ele se restringirá a alguns pontos. O primeiro deles, justificado no Estado de direito, é definir e regulamentar as liberdades burguesas, como o direito de propriedade ou a igualdade perante a lei. Dentro da mesma temática é função do Estado garantir segurança para as relações capitalistas, promovendo um ordenamento jurídico que crie regras e procedimentos, mecanismos para alterá-los e que garanta o cumprimento dos mesmos, podemos destacar aqui algumas dessas “regras” como as leis, os contratos etc. tudo isso leva a promoção de um cenário ideal para o livre mercado.
É importantíssimo notar que nesse modelo não é função do Estado promover de maneira substancial a partilha dos recursos entre os indivíduos. Essa afirmação se baseia em última instância de uma interpretação da própria conceituação genérica que fiz acerca das funções do Estado, pois, uma vez que ele tem que buscar a harmonia e o equilíbrio entre as diferentes classes, a intervenção estatal na promoção de impostos, principalmente impostos progressivos, desequilibraria a relação entre essas classes, uma vez que atingir-se-ia a harmonia somente por meio das forças do livre mercado. Isso se dá pois, nas palavras do próprio autor “Diferenças no volume de renda obtido contrabalançam as diferenças em outras características da profissão ou do negócio”, o que ele quer dizer com isso é que, se alguém escolheu um trabalho mais fácil e prazeroso e por consequência menos remunerado e outra pessoa um mais penoso mas com recompensas maiores o segundo não pode ser taxado por ter maior renda, visto que os diferentes “prazeres” contrabalanceiam as diferentes rendas. Uma argumentação parecida se estabelece quando a questão da diferença de renda é decorrente de “sorte”, pois, novamente nas palavras do autor “O homem trabalhador e econômico é qualificado de "merecedor", entretanto ele deve suas qualidades em grande parte aos genes que teve a felicidade (ou infelicidade) de herdar”, não podendo ser taxado por sua sorte, que é “cega como a justiça”.
Em âmbito quase diametralmente oposto, na promoção do “Estado social”, temos o pensamento do estado de bem-estar social, que seria aquele em que o Estado seria o principal regulador de todos os aspectos sociais, econômicos e políticos em um dado território nacional. Dessa maneira cabe ao Estado garantir aos seus cidadãos acesso à educação, segurança, habitação, alimentação, renda mínima etc., mas não enquanto um ato de caridade por se tratar de direitos que tem de ser oferecidos a todos os cidadãos. Vale aqui salientar que uma das principais metas que visa o Estado é a busca e garantia o pleno emprego, função que extrapola medidas meramente assistencialistas e paliativas (também de função estatal) para com seus cidadãos.
Assim, como o próprio Myrdal aponta o Estado vai se colocar nesse modelo como aquele que irá realizar a coordenação racionalizadora das diferentes intervenções públicas e particulares, visto sua centralidade frente as vontades públicas. Desse modo, a coordenação de intervenções leva a uma revisão delas, tendo em vista a maneira como elas se combinam no objetivo de levar o desenvolvimento de toda a comunidade nacional. Ademais, dada a coordenação também da economia nacional, compete ao Estado de bem-estar fazer previsões de curto e longo prazo para que, a luz dessas, se modifiquem as diretrizes para finanças, desenvolvimento, reformas sociais etc. Entende-se desse modo que o as funções do Estado não se limitam a coordenação, mas mesmo ao planejamento pois, nas palavras do autor “a coordenação leva ao planejamento, ou melhor, ela é planejamento, como esse termo veio a ser compreendido no mundo ocidental”. Para garantir isso justificasse nesse modelo a implementação de impostos, com especial ênfase para os impostos progressivos.
Chego em fim aos dias atuais para se pensar o papel do Estado, já digo de antemão que, de maneira geral, independentemente do modelo de Estado que se tenha adotado, ele está falhando em sua função mais básica, que seria a de garantir sua existência dada sua legitimidade com a população e o controle sob os diferentes tipos de capitais que existem. Isso se mostra claramente já tem algum tempo quando vemos grandes guinadas para governos extremistas, como o caso do Brasil, o da Hungria ou dos Estados Unidos, ou por inúmeros movimentos sociais e de protestos, como o do Chile, os que ocorreram na Venezuela, na China em especial em Hong Kong ou tantos outros. A falência de alguns Estados se mostra ainda mais acentuada em casos de crise, como a que agora vivemos, por não conseguirem garantir o mínimo nem do Estado social nem do Estado de direito quando postos em choque.
A resolução desse quadro exige do Estado que ele volte a pensar seu papel de conciliador e de garantidor de harmonias e equilíbrios, compreendo que isso não é fácil pois, dadas as mudanças na sociedade cada vez mais rápidas é muito difícil a adequação para atender as demandas dos velhos e novos atores que se põe. Por esses motivos, enxergo que com o risco de enrijecer-se na especialização e consequente burocratização de seu corpo estatal para a promoção de intervenções, se quiser continuar a existir, o Estado deve buscar cada vez mais desvencilhar-se desse papel de interventor e substituir essa função por uma segunda de coordenador e planejador, permitindo maior mobilidade frente aos novos problemas que se apresentam. Contudo, acho que é importante também salientar uma vez mais que o Estado só existe na coexistência entre diferentes classes, por isso, usando-se uma vez mais de Bourdieu, ele deve ter como principal papel, enquanto detentor de poder simbólico, estruturar o habitus, (sistema de disposições incorporadas, tendências que organizam as formas pelas quais os indivíduos percebem o mundo social ao seu redor e a ele reagem), para a percepção de cooperação e não de embate entre as classes que nele existem.
Concluo, por fim, de maneira pessimista, por não crer na possibilidade do Estado promover aquilo que acabo de alvitrar para suas funções, primeiramente devido a dificuldade teórica e prática para alcançar esse papel utópico de um Estado verdadeiramente conciliador de interesses e, segundamente, pois, durante toda essa exposição o Estado se colocou como uma instituição desprovida de interesses próprios, o que em vias de fato se mostra errado uma vez que ele sempre está representando os interesses de uma classe, impossibilitando a imparcialidade necessária à harmonia que ele deveria se propor. Assim, em verdade, para mim o Estado tem o seu único papel como uma instituição de trânsito para uma nova ordem onde, sem classes, ele não se faça necessário.

Felipe Jukemura

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