O sistema de saúde argentino e a resposta ágil, política e rígida

iara buoro sennes
Para Trocar Ideias
Published in
5 min readJul 16, 2020

Nos últimos meses de pandemia foi forte a sensação de falta de conhecimento e de informação. Em nenhuma situação há conhecimento absoluto para a tomada de decisões, e, justamente, o mérito e o ponto das decisões é se basear no máximo de informações disponíveis até o momento e tentar ser o mais prudente e bem-sucedido possível. Com a evolução da pandemia ao redor do mundo, foi muito perceptível o quanto as descobertas acerca do vírus, da forma de contaminação e das medidas mais efetivas foram se acumulando e progredindo. Cada país teve que dar uma resposta em um determinado momento e com determinado acúmulo de exemplos internacionais e precisão nos dados locais. Começo o texto falando disso pois me parece que, no caso da Argentina, um elemento bastante central para o relativo sucesso no combate ao Coronavírus foi a sua rápida resposta e decreto de lockdown.

Dentre os países da América Latina, a Argentina foi pioneira em impor o isolamento social. Decretada em 20 de março, quando havia 128 casos e 3 mortes, a quarentena compulsória foi bastante rigorosa para os argentinos, e, ao que parece, foi capaz de, em um primeiro momento, achatar a curva da contaminação. Segundo uma reportagem do Jornal Nexo, “em 20 de março, a taxa de transmissão no país dobrava a cada 3,3 dias. Em 12 de abril, a taxa já tinha se dilatado para ser 10,3 dias. Ou seja, já demorava 3 vezes mais tempo para que a taxa de contágio se duplicasse. Em 26 de abril, a taxa já era de 17,1 dias.”. Tais números apontam que esta medida teve o efeito desejado. Inclusive porque, é válido ressaltar que o país não teve uma testagem alta, que é outro fator que tem auxiliado diversos países a acompanhar e isolar os casos da doença. No final de abril a Argentina tinha realizado 1240 testes por milhão de habitantes, menor do que a do Brasil (com uma testagem baixa também) de 1597 por milhão de habitantes. Esta rápida resposta do governo federal, como sê vê, foi essencial para a primeira fase do combate ao Coronavírus na Argentina, e teve um forte papel em manter a situação razoavelmente sob controle e permitir que o sistema de saúde tivesse mais tempo para se preparar e organizar sua estrutura diante de uma possibilidade de crescente demanda de UTIs e equipamentos médicos.

A descrição do sistema de saúde argentino é interessante para entender os desafios que se impuseram ao país diante desta crise. O que me proponho a refletir neste breve texto, então, são as possibilidades de atuação estatal, considerando as limitações do sistema argentino de saúde, e como efetivamente os governos federal e provincial agiram.

Na Argentina, o sistema de saúde se divide em três frentes paralelas: o sistema público, o sistema privado e as ‘obras sociais’. Constitucionalmente, todos os argentinos têm direito à saúde pública, então o sistema público abrange 100% da população (incluindo estrangeiros); ele é financiado de forma conjunta pela união, pelas províncias e pelos municípios; As províncias e os municípios são os principais responsáveis pela prestação de serviços e pelas políticas de saúde, e o governo federal possui delegacias do Ministério da Saúde e da Assistência Social em cada província. As ‘obras sociais’ são um subsistema oferecido aos trabalhadores formais que se estabeleceu historicamente através dos movimentos sindicais no país e que se solidificaram através da legislação que determina o financiamento como sendo 3% do salário que recai sobre o empregado e 6% sobre o empregador; grande parte dos serviços prestados através das ‘obras sociais’ são terceirizadas para o sistema privado, de forma que as obras sociais servem essencialmente como alocadores de recursos. Por fim, o sistema privado presta serviços através dos seguros privados de saúde e também através de contratos com as ‘obras sociais’.

A partir desta rápida descrição, temos o que se define em um artigo escrito para o 9º Congresso Latinoamericano de Ciência Política, como um sistema fragmentado- que opera por meio de subsistemas de prestação de serviços paralelos- e segmentado- uma vez que os públicos- alvo e especializações são diferentes entre os serviços prestados pelos subsistemas. Outro artigo, mais recente, organiza um gráfico que aponta que, em 2013, 16% dos argentinos possuia cobertura de saúde privada, 63% tinha acesso à saúde através do sistema de ‘obras sociais’ e 36% utilizavam exclusivamente o sistema público. Dentre estes, 15% da população possuía dupla cobertura. Ambos os artigos mencionados compilam informações e apontam para a falta de eficiência e para a desigualdade na prestação de serviços de saúde no país, uma vez que há, dentre as províncias, que são as responsáveis pela maior parte das determinações públicas de saúde, grande desigualdade de recursos e equipamentos; e, dentre os subsistemas, há uma sobreposição na prestação de serviços, bem como uma grande diferença entre os serviços em si.

A organização de um sistema de saúde descentralizado como ocorre na Argentina está presente em diversos países da América Latina, mas, diferentemente do SUS brasileiro, por exemplo, a coordenação do sistema é menos integrada; cada província regula e implementa suas próprias políticas- ainda que haja programas nacionais e algumas diretrizes mais gerais. Assim sendo, no que tange a resposta à crise do Coronavírus, me parece que, de fato, a decisão mais acertada e que não colocou- por enquanto- a Argentina na lista de lugares como Equador e Manaus, de total descontrole dado um sistema de saúde relativamente insuficiente e despreparado, tenha sido o decreto de rígido lockdown logo no primeiro momento. Com isso, como disse o presidente no início de março Alberto Fernández, o objetivo era “ganhar tempo para prevenir o avanço do vírus”, o que, de fato, ocorreu.

Entretanto, a expansão e preparo do sistema de saúde não foram grandes o suficiente, e, nas últimas semanas o país vem enfrentando um novo crescimento dos casos ao redor de Buenos Aires, que concentra cerca de 93,5% dos casos do país, segundo o El País, no dia 27 de junho. No dia 20 de julho, mesmo com o crescimento no número de casos, a ocupação de leitos de UTI do país estava em 52,8%, número este que mostra, ainda, certo controle sobre a epidemia. Atualmente, o combate à propagação do vírus vem sendo intensificado nas regiões periféricas da capital, com o bloqueio de algumas comunidades, testagem rápida e isolamento -inclusive em hotéis de Buenos Aires- de pessoas que apresentem quaisquer sintomas.

O que quero ressaltar, então, é a saída — bem-sucedida até o momento- da Argentina, apontando para o fato de a ação governamental ter se dado a partir de uma coordenação federal com grande participação e colaboração dos governadores das províncias, inclusive os da oposição. Os desafios de coordenação e de rápida ampliação do sistema de saúde, que enfrentam também falta de profissionais da saúde e equipamentos, foram compensados e desviados através de uma resposta preventiva bastante rigorosa. Resta ver como seguirá a situação no país, principalmente na capital que se vê esgotada pelas drásticas medidas de restrição à circulação, além do enorme recuo econômico e volta para uma nova situação de recessão que já é enfrentada há um longo tempo.

E nós, brasileiros, ficamos aqui com um exemplo de como uma coordenação política sólida e ampla, junto com governantes e um presidente que reconhecem e valorizam a vida da população, podem fazer a diferença em países como Argentina e Brasil, que apesar de grandes diferenças entre si, não são Austrálias ou Alemanhas.

  • Escrito em 10 de julho de 2020

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