Reformas administrativas no Brasil — uma leitura do papel do Estado

iara buoro sennes
Para Trocar Ideias
Published in
8 min readJun 25, 2020

— -PANORAMA HISTÓRICO — -

Em termos práticos, a concepção do papel do Estado se expressa na sua organização e define a dinâmica de atuação que este terá nas diferentes esferas da sociedade. Dessa maneira, se fizermos uma breve reconstrução histórica e analisarmos rapidamente as reformas administrativas pela qual o Estado brasileiro passou, podemos constatar as diferentes funções que este assumiu ou deixou de assumir, e a forma pela qual foi se estruturando. É válido ressaltar, também, que os critérios para a sistematização e articulação das atividades e do corpo da máquina estatal expressam também os valores e ideais norteadores da concepção da função do Estado.
Neste momento, a análise partirá da Reforma Burocrática que, em 1936, com o governo de Getúlio Vargas, tinha como objetivo tecnicizar e estabelecer procedimentos objetivos para as ações estatais. Os órgãos burocratizados, cuja reforma ficou sob responsabilidade do recém-criado DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), passaram a adotar critério impessoais, padronizados e técnicos para a seleção e gestão dos funcionários; bem como procedimentos que estabeleciam o processo de elaboração e implementação das políticas públicas. Tais características eram cruciais para a organização do Estado que se modernizava, juntamente com as atividades econômicas industriais cada vez mais automatizadas e dinâmicas. A teoria weberiana de tornar a estrutura estatal mais eficiente fazia sentido para a época, especialmente pela importância de se criar um corpo político que de fato se voltasse para o âmbito público, e se afastasse da lógica patrimonialista arcaica de nomeação sem qualquer critério administrativa.
Entretanto, Vargas não tinha o interesse de burocratizar toda a estrutura estatal e sua política foi orientada para a manutenção de sua base de poder e de promoção de um Estado Nacional- Desenvolvimentista. A partir disso podemos resgatar a função do Estado pressuposta na administração varguista. É evidente como a estrutura estatal se orientou para sustentar o tripé do desenvolvimento: empresa pública, empresa privada nacional e capital internacional. Diversas empresas estatais e nacionais foram abertas, bem como agências e bancos nas áreas de indústria, transporte e infraestrutura.
Assim se orientou o Estado brasileiro até 1967, com setores específicos burocratizados, foco nos investimentos estatais para o desenvolvimento e restritos procedimentos para políticas públicas. No entanto, diferentemente dos Estados no século XIX, que funcionavam mais eficientemente quando burocratizados, os Estados modernos têm também uma responsabilidade com a garantia de direitos e bem-estar social; fator que implica na exigência de maior grau de flexibilidade e de avaliação específica. Ademais, estruturas burocratizadas não eficiente geram maiores gastos com o procedimento e não facilitam a implementação das políticas governamentais. Diante disso, durante a ditadura militar foi expedido o Decreto Lei 200, cujo objetivo foi reduzir os custos burocráticos e tornar a realização de políticas mais eficiente. Para tal, os militares descentralizaram os órgãos estatais, criando a administração indireta, que era fiscalizada pelos ministérios e que não seguiam procedimentos e estruturas burocráticas. Foi um primeiro movimento na direção de uma estrutura mais gerencial, mas implicou em um enorme crescimento do Estado, bem como possibilitou a permanência de relações patrimonialistas entre funcionários ministeriais e a administração indireta.
Tal arranjo se conjugou com a criação de diversos órgãos de censura, fiscalização, propaganda e com o fechamento do Congresso, de forma que a orientação do Estado brasileiro estava nas mãos dos militares no Executivo, sem mecanismos de controle por parte da população. As políticas também se guiaram em grande parte para investimentos em grandes obras de infraestrutura numa concepção de controle estatal das atividades por meio de empresas públicas. Entretanto, sem nenhuma transparência, com propaganda ufanista e um crescimento econômico e investimentos insustentáveis, uma parte dessas obras monumentais foi interrompida ou se tornou injustificável. Assim sendo, o Estado no período ditatorial esteve focado em promover crescimento econômico e obras em escalas inimagináveis, com forte influência da política estadunidense e objetivos incabíveis. Não houve um importante foco nas políticas sociais, os órgãos de propaganda e de repressão visavam sustentar o governo de forma empenhada e, evidentemente, desumana.
Ao fim de tal período, então, os novos contornos do Estado brasileiro vieram com a Constituição de 1988. O país estava em uma crise fiscal, política e social importante e diversos grupos sociais haviam se mobilizado e articulado para o estabelecimento de princípios democráticos. A reforma feita durante a ditadura havia gerado um enorme crescimento do Estado, de forma que havia pouca habilidade de controle dos órgãos indiretos e da garantia de eficiência nas políticas públicas. Os constituintes, então, buscaram, além de garantir direitos sociais para os mais diversos grupos que estiveram mobilizados na época, retomar e concluir a estruturação de uma burocracia estatal iniciada na década de 1930. O entendimento norteador era de que a impessoalidade, critérios técnicos e procedimentalização gerariam maior possibilidade de fiscalização e controle da atuação estatal, bem como garantiriam maior isonomia e democratização para os cargos públicos, que não mais dependeriam apenas de nomeações pessoais.
Neste novo regimento para o Estado brasileiro, juntamente com mais direitos, também foram consolidados diversos privilégios (fruto do corporativismo bastante influente) e a ação estatal voltou a ser engessada. Tanto na administração direta quanto na indireta, o foco voltou a ser a hiper-valorização da forma, em detrimento da avaliação dos resultados de forma gerencial (que o governo ditatorial falhou em implementar com a supervisão ministerial como responsável por fiscalizar a atuação da administração indireta, que se traduziu em uma falta de controle e articulação dos órgão estatais). A nova estrutura, apesar instaurar critérios mais democráticos e técnicos para ação do Estado, implicou em gastos enormes com a procedimentalização e não necessariamente na tradução de políticas mais eficientes, eficazes e efetivas.
A última reforma administrativa brasileira ocorreu no governo FHC, a partir de 1995, com uma Reforma Gerencial que partiu do MARE (Ministério Administrativo e da Reforma do Estado), comandado por Bresser-Pereira. Sua proposta não foi concluída, mas tinha como objetivo tirar o foco do procedimento e garantir maior eficiência e controle para as políticas públicas. O desenho da reforma separa quatro categorias do corpo estatal, classificando a forma de propriedade e de administração. Brevemente, havia: o núcleo estratégico (os três poderes) que obviamente continuariam a ser estatais, porém com cada vez mais critérios avaliativos gerenciais; as atividades exclusivas (polícia, fiscalização, seguridade social básica…) que deveria continuar estatais, por concentrarem as funções elementares do Estado, mas que deveriam ser gerenciais, com acompanhamento e avaliação dos resultados; os serviços não- exclusivos (universidades, hospitais, centros de pesquisa) que poderiam ser públicos não-estatais, firmando relações por meio dos contratos de gestão e sob uma avaliação gerencial; e a produção para o mercado (empresas estatais) que poderiam ser privatizadas e gerenciais.

— -DEBATE ATUAL — -

Trazendo a discussão para o contexto atual, e partindo do recuo histórico apresentado anteriormente, vemos o Estado brasileiro atualmente com traços fortemente burocráticos, poucas formas de avaliação e controle com base em critérios objetivos, metas pré-estabelecidas e monitoramento constante dos programas e políticas. Ainda assim, há exemplos bastante relevantes da capacidade de gerar programas federais com impacto em grande parte do país que mostram que há possibilidade para o sucesso estatal, como o Bolsa Família, o ENEM e o SUS… (válido apontar que há exceções à boa gestão dessas políticas no governo Bolsonaro, mas não vem ao caso agora..)
Fato é que, com um país com as complexidades do Brasil, não é fácil encontrar a forma mais efetiva de estruturar a máquina estatal, garantindo a boa alocação de recursos, capilaridade suficiente, articulação política entre os entes federativos, monitoramento, avaliação e elaboração de políticas pública capazes de responder a realidades nacionais tão distintas.
Neste quesito, uma discussão importante e, diria, essencial no contexto atual é recuperar a finalidade da atuação estatal; afinal, para que serve o Estado? Em uma dada localidade, o Estado é o representante da autoridade legítima, o que lhe atribui a responsabilidade de garantir a segurança tanto externa quanto interna dos cidadãos, de promover e arbitrar a ordem interna e a relação com Estados estrangeiros. Pelo menos em uma democracia representativa, o Estado responde pela vontade popular, se baseia nos princípios constitucionais e visa a garantia do bem-comum.
Esse bem-comum é um ponto que é válido aprofundar. Tomando as eleições como momentos-chave para a definição das opiniões e preferências dos cidadãos, a função da estrutura estatal é seguir e entregar as prioridades defendidas nos votos. Entretanto, além disso, o Estado deve observar e garantir, em primeiro plano, os direitos de seus cidadãos, de forma a gerar possibilidades para o pleno desenvolvimento e bem-estar da população. Na realidade brasileira, tal componente da função do Estado é crucial, uma vez dada grande desigualdade social e de oportunidades. Não investir em programa sociais que possam dar condições mínimas de vida e impulsionar o desenvolvimento da população é irresponsável, imoral, e, no limite, perda de uma enorme capacidade criativa e produtiva para o país.
É inegável que diversas áreas de investimento não têm como se estruturar sem a participação estatal, seja em razão da legitimidade ou do poder que este detém. Uma coisa que pouco se vê na construção e concepção do Estado brasileiro é a percepção dos cidadãos como consumidores coletivos, os quais definem a demanda por serviços e o conjunto das preferências e critérios de satisfação desses serviços. Tanto na perspectiva da estrutura administrativa quanto da democracia, falta muito para o Brasil enxergar os órgãos estatais como servidores da nação. O desenho do Estado deve se alinhar para a prosperidade, crescimento econômico e bem-estar social, mas, enquanto não perceber no cidadão a finalidade última das políticas públicas, os governos continuarão se perdendo no meio do caminho, desvirtuando as bases elementares para as quais a estrutura foi criada. Arrisco dizer que, parte importante da desconfiança no Estado e mesmo da democracia surgem da falta dessa percepção de cidadania como elemento central do funcionamento dos órgãos públicos.
Assim sendo, e retomando a discussão dos modelos administrativos, a orientação do Estado para sua função eminentemente pública requer certas modernizações e avanços. É importante que o corpo estatal adquira mais flexibilidade, postas as inúmeras diferenças no território brasileiro, os diversos contextos e adversidades os quais qualquer política ou programa enfrentam. Não se pode imaginar que políticas desenhadas em escala teórica funcionem quando colocadas à prova. Menos rigidez, no entanto, de forma alguma significa menos controle; simplesmente, é urgente que haja formas inteligentes de medir a eficiência (custo-benefício), eficácia (entrega), efetividade (impacto) dos programas implementados. Se não houver critérios e metas claras às quais se orientem as prioridades e as ações públicas é impossível avaliar o desempenho e garantir o melhor aproveitamento possível dos recursos públicos. Aqui reside uma parte importante de casos de sucesso da articulação estatal: programas como o SUS, ENEM e o Bolsa Família se utilizaram de algumas dessas ferramentas, diversificando as esferas de responsabilidade pela implementação, centralizando na União funções mais coordenativas e estabelecendo mecanismos claros de controle e avaliação.
Por fim, mas não menos importante, ao pensar em um Estado mais efetivo nos questionamos: por que o Estado deve ter a expertise de realizar as mais diferentes atividades da melhor forma possível? É razoável pensar que não deve. Ainda mais com contextos sociais cada vez mais dinâmicos e diversos, faz sentido pensar em governança em rede, na qual a estrutura do Estado pode facilmente se aliar a outras organizações civis para a prestação de serviços. Afinal, se a finalidade do Estado está em gerar as melhores condições de vida e desenvolvimento para seu cidadãos e para o país, e, se há agentes mais capacitados e preparados para a prestação de algum serviço, não há motivos para o Estado ter de montar sua própria estrutura, aprender e centralizar em si a implementação. Cada vez mais é importante conseguir pensar no Estado como um corpo dinâmico, capaz de gerenciar e fiscalizar a realização de suas políticas por outros entes, podendo concentrar suas forças em melhor articular e coordenar as diferentes frentes, bem como atuar diretamente nas áreas mais emergenciais e estruturais para o desenvolvimento.

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