É assim que acontecem as grandes coisas da vida: aos pouquinhos

Carolina Bataier
Parachoque
Published in
3 min readNov 17, 2021

Por pouco não entro em desespero procurando pelas anotações da história que estou escrevendo. Comecei como uma brincadeira, um exercício de criatividade, e já tenho 34 capítulos. Sei como a história termina, embora isso possa mudar, a depender do desenrolar de cada capítulo. Está tudo guardado num caderninho de capa dura.

No primeiro fim de semana de novembro mudamos de casa. Já estamos na metade do mês e a sala continua cheia de caixas. Há livros e roupas pelo chão, o chuveiro queimou e somente ontem as camas foram levadas para os quartos.

Na busca pelo caderno, encontrei outros papeis. Num deles, o rascunho de um texto inacabado: “então é assim que as pessoas entram nas nossas vidas. Aos poucos, esquecendo um livro, uma jaqueta”.

Esta é a primeira casa que eu e Filipe visitamos juntos. Ele decidiu primeiro. Eu, depois de pensar um pouco, concordei. Passamos o primeiro fim de semana do mês encaixotando coisas, desmontando móveis, varrendo, esfregando, tirando a poeira e tomando chuva. Muita chuva. E, porque somos pessoas solares, em algum momento brigamos. Nada grave, tudo dentro dos conformes de uma relação de quase sete anos.

Quase sete anos e, agora, escolhemos juntos uma casa.

Enquanto eu me perdia na bagunça e, cansada, sentei na ponte sobre o rio que passa no quintal, Filipe arrumou a cozinha. Fez uma composteira, organizou uma estante e se preocupou, o tempo todo, com os gatos: se estavam se adaptando bem, se estão confortáveis, se não iriam fugir, se os cachorros do vizinho estavam por perto.

Quando nos encontramos pela primeira vez, fazia frio. Foi na Irlanda, na calçada de um museu, não porque somos pessoas cultas e interessantes que marcam esse tipo de encontro, mas porque era o ponto de referência mais fácil perto da minha casa. Fomos num bar onde tocava country, depois numa festa no subsolo de um restaurante de comida brasileira e, no meio do caminho até o balcão para a décima cerveja da noite, eu segurei a mão dele.

Ele esqueceu um estojo de cigarros em casa, depois eu esqueci minhas chaves no bolso dele.

De repente, já são seis anos e meio.

Uma casa, uma história, um amor. É assim que acontecem as grandes coisas da vida: aos pouquinhos.

Quase sempre, de um modo bem diferente das histórias desenhadas na nossa imaginação.

Não por isso, menos bonito. Desviar das regras nos faz trilhar caminhos bons para os nossos pés.

Matilde Campilho, a poeta portuguesa, escreveu:

Algumas histórias têm a duração exata de uma música de rock, outras se dividem em cantos.

Essa frase está no livro Jóquei, no mesmo texto onde ela deixa o conselho bonito:

É preciso estar atento, e descobrir o bichinho que se mexe debaixo da folhagem. Não o mate: se cubra de flores e entre para brincar com ele.

Dos textos dela, um dos meus preferidos diz assim:

(…) Acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.

É do poema Fevereiro, que não está no livro. Alguma boa alma deixou no Youtube este vídeo, de Matilde narrando o poema.

Daqui a pouco, é aniversário do rapaz que, desde aquela noite fria, aceitou se aventurar comigo a quebrar termômetros.

Acho que foi David Foster Wallace quem deu meu conselho preferido sobre escrita:

O escritor não deve escrever com a parte dele que deseja ser amada, mas com aquela que é capaz de amar*.

Um modo de exercitar as palavras como sugeriu o Wallace é trazendo para os meus textos as pessoas mais encantadoras. Algumas delas, eu tenho a alegria de observar bem de perto, enquanto planeja viagens, faz bolo ou dirige tenso e aflito porque o gato não para de miar dentro da caixinha, e escolhe não ligar o som para não incomodar ainda mais o bichinho.

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*Você sabe a frase exata? É mesmo do David? Me conta!
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