Amor é considerar outros caminhos

Carolina Bataier
Parachoque
Published in
6 min readNov 24, 2022

Coloquei para tocar a playlist de músicas curtidas, selecionadas nos últimos três anos, e entrei no chuveiro. O banho tem sido meu espaço de relaxamento. Eu danço, canto, medito, me demoro lavando os cabelos. Antes de ser mãe, subestimei os relatos sobre o cansaço dos primeiros meses.

É exaustivo.

Refeições com mesa posta viraram luxo. A regra é comer quando dá, muitas vezes com o prato no colo e a bebê no peito. Escovo os dentes quando é possível e isso varia entre oito da manhã e quatro da tarde. As roupas sujas se acumulam no cesto.

Mas o banho demorado eu consegui manter, contando com a parceria do Filipe, o pai da Cecília. Na última newsletter enviada, eu ainda era uma gestante. Agora, sou mãe. Escrevo enquanto ela dorme ao meu lado e do meu peito escorre leite. Há dias, não saio de casa. As sobrancelhas estão por fazer, há roupinhas de bebê pelo chão do quarto e na última vez em que varri a sala ainda havia um ser humano dentro da minha barriga.

Acendi um incenso e liguei o chuveiro. A água morna amoleceu a tensão dos meus ombros. Quando, no celular apoiado sobre a pia, Cazuza cantou Perto do fogo, lembrei das fogueiras aos domingos na minha antiga casa, de onde mudei faz pouco mais de um mês. Cada uma das músicas da playlist remetia a um momento da Carol antes de ser mãe. Nas últimas horas de existência dessa mulher que não sou mais, estive naquele chuveiro sentada numa bola de pilates, mexendo o quadril a cada contração.

Na vida de toda gestante — menos daquelas que optam pelo parto domiciliar — existe um salto no abismo. É quando saímos de casa sozinhas e retornamos acompanhadas de uma pessoa que estará ali por muito tempo daquele dia em diante. A casa ficou como deixamos. Algumas roupas sobre a cômoda, um chinelo ao lado da cama, o feijão da geladeira, os gatos dormindo no sofá. No espelho, alguém à espera de um cumprimento, uma apresentação. Observo meus olhos no reflexo, suspiro e penso: lá vamos nós começar tudo de novo.

Num dos primeiros dias, Filipe olhou maravilhado para aquela criança de 50 centímetros deitada em nossa cama e disse: “vai ser assim pra sempre”. Ela vai crescer, sim, mas estará aqui de agora em diante.

Tudo mudou.

Quando minha barriga começou a tornar dispensáveis as camisetas mais justas, assisti ao episódio de Greg News, o programa de humor do Gregório Duvivier, sobre filhos. E chorei. A partir da metade do episódio, Gregório lê uma carta para a filha, nascida dias depois da gravação do programa. Ele enuncia bons motivos para chegar ao mundo, apesar das dificuldades. Eu incluiria na lista mais este:

Você, Cecília, nasceu no mesmo país onde vive Gal Costa. E dividiu alguns dias de sua existência com ela neste plano. Isso é um privilégio nosso.

Gal vive, sim.

Como escreveu Luiz Antonio Simas, “De onde tiraram essa ideia estapafúrdia de que ela morreu? Eu, por exemplo, estou escutando Gal cantar agora”.

No dia da estranha notícia sobre a partida de Gal, eu estava em casa, com minha filha no colo. Dei play em Baby. Ficamos na sala ouvindo ecoar A Voz.

Você
precisa aprender inglês
precisa aprender o que eu sei
e o que eu não sei mais.

Tentei cantar junto mas umas lágrimas me entalaram as palavras na garganta. Cecília, imagino, não entendeu nada. Eu cuidarei para vivermos esse momento ainda muitas vezes. Talvez, sem choro nas próximas.

Quando voltei da maternidade, encontrei sobre o sofá o último livro lido antes da chegada da minha filha, Tudo sobre o amor, de bell hooks. Nos últimos dias de gestação, passei tardes deitada na rede, imersa nas palavras que me levariam a reflexões sobre afeto, cuidado e comunidade. Em cada capítulo, bell aborda um aspecto do amor. Em todas as páginas, sobressai a compreensão de que amor não é um sentimento a brotar como erva em solo fértil. É ação, verbo. É o que fazemos por nós e pelos outros para termos uma vida e uma sociedade mais cuidadosas e respeitosas e para encontrarmos sentido e aconchego mesmo nos momentos de dor.

No capítulo 11, Perda: amar na vida e na morte, a autora nos lembra que uma vida amorosa deixa a morte menos assustadora.

Amar permite que transformemos nossa celebração da morte em uma celebração da vida (bell hooks, p.226).

É o que faz Simas ao sobrepor a criação de Gal à sua morte. A plenitude com que ela viveu, expressa em sua criação, revela uma existência de força e coragem. Lembro da imagem de Gal no palco do Rock in Rio de 1994, camisa aberta, peitos à mostra. Eu, aos nove anos, maravilhada com a cena, assistia àquela deusa escancarar diante dos meus olhos um mundo de possibilidades. Afinal, isso também é ser mulher.

Na TV, as homenagens à cantora me lembraram do burburinho causado na época. Por que uma mulher de 50 anos subia aos palcos e expunha os seios? — questionavam.

A moral dos homens pequenos pouco entende de liberdade. Nessas horas, a beleza da arte se enfia pelas frestas e nos fala da coragem necessária para incomodar, perverter a ordem e sonhar com outros mundos.

Afinal, por que não mostrar os seios?

O livro de bell é uma obra política que, em cada página, apresenta o amor como ferramenta de resistência contra quem celebra a morte. Amor é olhar para tudo de nocivo que está posto e considerar: há outros caminhos.

Nós nos afastamos dessa adoração pela morte desafiando o patriarcado, criando a paz, trabalhando por justiça e abraçando uma ética amorosa (bell hooks, p. 223).

Obrigada, Gal, por derramar o leite mal na cara dos caretas e ser amor da cabeça aos pés.

Durante a gravidez, falei na terapia sobre o medo de morrer no parto. Ao longo das conversas, entendi que a temida morte poderia ser simbólica, porque parir é soltar a mão de uma parte de nós mesmas para ver nascer duas pessoas — a criança e a mãe.

Na volta para casa, depois do nascimento de Cecília, encontrei no chão dois chumaços de espuma. Eram enchimentos vindos nos sapatinhos de bebê que compuseram o enxoval. Tive o impulso de jogar no lixo, mas logo considerei deixá-los ali. Pareciam duas nuvenzinhas aterrissadas no tapete da sala. Pensei que poderão ser úteis nas brincadeiras com a minha criança. É bastante interessante ter nuvens ao alcance das mãos.

Meus dias se expandem para acomodar essa nova vida e, devagar, compreendo que maternidade é, também, inventar mundos. Fazer das espumas, nuvens. Se falo do amor como prática, é porque vejo nele o caminho para criar mundos possíveis e, a partir de agora, como escreveu Francisco Mallmann, preciso sonhar tudo outra vez.

Foi bom ler bell hooks pouco antes da chegada da minha filha, e tomar contato com a teoria do amor como exercício de coragem na construção de novas realidades. Passado o susto e vencido o incômodo do primeiro mês de maternidade, eu mais uma vez entoo o mantra de Guimarães Rosa:

O que a vida quer da gente é coragem.

Então, aqui estou, com o peito escorrendo leite e o coração transbordando amor. Porque eu gerei uma vida, morri e perdi o medo de morrer.

*

Se você se interessa por temas relacionados a maternidade, te convido para ler o texto em que falo sobre puerpério. Para ler, clique aqui.

A edição de Tudo sobre o amor — novas perspectivas que menciono aqui é o de 2020, da editora Elefante. A tradução é de Stephanie Borges.

Estes textos fazem parte da minha newsletter, Parachoque. Para receber no seu e-mail, clique aqui.

--

--