Kintsugi, ou: a arte viver com as marcas

Carolina Bataier
Parachoque
Published in
3 min readOct 24, 2021

é um outubro estranho. chove, faz frio e, hoje, venta muito. levanto da cama — os pés quentinhos — para fechar as janelas e encontro os gatos cochilando pelo quarto. eram dois, agora são três, porque nunca fui de resistir às gentilezas da vida. volto para a cama, observo as folhas lá fora, agitadas pela ventania. retorno ao livro, são as últimas páginas, vou com calma. leio:

vale a pena viver. às vezes custa, não vou enganar vocês, mas prometo que vale a pena.*

ontem, uma pergunta de caixinha de instagram me fez refletir sobre meus motivos para me manter firme. pensei nas pessoas. as vídeo chamadas, fotos de gatos, piadas, conversas sobre comida, sono, sexo, homens, afazeres domésticos. lembrei das visitas recentes, caminhada na rua deserta para buscar uma pizza, risadas no sofá, cremes para a pele e o mar visto do alto das pedras. minha irmã com seus silêncios, meu irmão com seus ruídos, meus pais sorridentes numa foto tremida, todos os convites para fazer qualquer coisa logo ali: um café, um cigarro, um jantar, um drink, compartilhar uma música, um poema, um desabafo. “ontem, desmaiei”, me escrevem e eu entendo: meu colo também é importante.

quando eu tirava das paredes as teias de aranha e minha irmã ria — estava mesmo tudo uma bagunça — eu notava: teve dias em que passei despercebida por mim.

pela primeira vez na vida, umas pílulas me ajudam a ter tranquilidade. sozinha, eu não dei conta. e, assim, descobri o prazer de ser frágil.

sou altamente quebrável, mas,

existe uma técnica japonesa chamada kintsugi. quando uma cerâmica se parte em pedacinhos, os artesãos usam uma cola de ouro para reunir as partes. a peça é recuperada e as marcas ficam evidentes para sempre, brilhando em amarelo.

lembro dos abraços da noite passada e sorrio. devagar, vamos voltando para a vida. com cuidado, para não ferir os reparos.

***

*O livro é Aprender a falar com as plantas, da catalã Marta Orriols. É a história de uma médica neonatologista que está buscando, no vazio dos dias, o sentido para a vida depois da morte do seu companheiro. Se eu contar mais que isso, talvez dê spoiler. Digo, então, que o livro tem cenas lindas, como quando a narradora tenta reanimar uma criança que acabou de nascer. “Escuta, pequena, uma das coisas que valem a pena é o mar”, diz a doutora Paula, na tentativa de salvar a vida.

*Este texto foi enviado também na minha newsletter, como um bônus, já que não escrevi em setembro e a proposta é um texto por mês. O motivo da minha ausência está nas palavras acima. Uma ansiedade de longa data, não tratada, virou depressão. Estou, agora, reaprendendo sobre mim, com calma e amor. Mas, para chegar até aqui, foi necessário romper com alguns preconceitos. Os debates online sobre saúde mental foram essenciais neste meu processo. Se você está passando por algo assim, deixo aqui a sugestão do perfil da minha amiga-inspiração Luana Ibelli, que tem uma abordagem leve — e bastante necessária — sobre o tema.

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