Liberdade é estar confortável com quem a gente é
Uma das minhas lembranças mais bonitas é a das serenatas do seu Lico. Naquela época, nós morávamos numa cidade muito pequena — só três mil habitantes. Minha casa ficava na última rua e, dali em diante, era tudo mato. Seu Lico morava em frente, com a companheira e o filho.
Certa noite, entrou na minha casa um som comprido, choroso. Corri para a varanda e vi, do outro lado da rua, no banquinho de madeira debaixo da castanheira, meu vizinho agarrado à sanfona. O cabelo branco brilhando no azul do luar, o rosto aberto num sorriso.
Lembro de deitar na varanda e sentir o piso ainda morno dos raios do sol. Minha mãe também apareceu, sentou ao meu lado e me fez cafuné, os dedos embalados pela melodia.
Com a chegada das noites quentes, vieram outras serenatas. Seu Lico aparecia na calçada, ajeitava a sanfona sobre a barriga e enfeitava a noite.
Certas ocasiões, o filho dele — pouca coisa mais velho que eu — acompanhava tocando viola, desajeitado, quase todo escondido atrás do instrumento. Entre uma e outra música, o velho fazia pausas para cantar as notas para o menino, ajeitar os dedos dele sobre as cordas, acertar o ritmo. Para esses momentos didáticos, a música preferida era Luar do sertão. Então, eu gostava mais ainda quando o menino aparecia, porque poucas coisas eram mais bonitas do que os versos:
Coisa mais bela neste mundo não existe
Do que ouvir um galo triste, no sertão se faz luar
Parece até que a alma da lua é quem diz: canta!
Escondida na garganta deste galo a soluçar
Eu gosto do cheiro de dezembro. E, se tivesse som, seria o da sanfona do seu Lico. Hoje, morando num lugar onde o luar é menos azul, eu reaprendo sobre as estações. Por aqui, o calor chega mais úmido e deita sobre a pele da gente uma camada de orvalho quente. A lua some detrás de nuvens e árvores grandes. Desde que cheguei à casa nova, longe da cidade, a grande surpresa tem sido os vagalumes.
Fazia muitos anos que eu não via esses insetos-lanternas, uma das coisas mais incríveis da natureza. Na primeira noite, um deles se acomodou na janela do quarto. Ficou do lado de fora mandando seus sinais de luz que me ativaram a memória e me levaram para outra noite de calor, quando meu avô chamou as crianças de casa e se embrenhou noite adentro. Seguimos, sem medo, apesar da escuridão. Ele era um homem forte, com mãos treinadas em facão. Bruto, matava bichos, selava cavalos, cortava cana. Mas, naquele dia, usou os dedos grossos para pinçar no ar os vagalumes. Colocou um punhado deles num pote de vidro, tapou e balançou acima das nossas cabeças. Nossos olhos — seis pares de jabuticabas — brilhavam igual os insetos luminosos. Foi uma noite de encanto.
Agora mesmo, enquanto escrevo, os vagalumes passeiam entre as árvores no jardim. No calendário, ainda é primavera, mas essa precisão é menos importante em certas zonas tropicais.
Para mim, a época gostosa do ano — que em tempos difíceis podemos chamar de “época menos ruim” — chega depois do banho de chuva. Lembro do primeiro. Eu adolescente, saindo da casa de uma amiga num começo de noite, depois da festinha de despedida do fim das aulas. Minha mãe recomendou: se chover, me liga, eu te busco.
Os relâmpagos trincavam o céu e o asfalto começava a soltar o cheiro adocicado. Uma amiga convidou: vamos?
Pelas ruas amareladas das luzes dos postes, caminhamos sentindo as primeiras gotas. Em minutos, era tudo uma cascata morna e nós cantávamos. Desconfio ter sido essa a primeira vez que experimentei a liberdade depois de aprender que, dentre tantos significados, essa palavra pode ser compreendida como: saborear os desejos.
Cheguei em casa ensopada, levei uma bronca e dormi um sono pesado. Desde então, todo ano uma chuva me pega. Hoje, ela veio depois do trabalho, quando eu pedalava para casa no fim de tarde. O céu estava escuro, os primeiros pingos molharam meu braço, quando eu estava ainda perto do ponto de ônibus. Existia a opção mais segura, mas o caminho é bonito e o calor tem sido intenso.
Debaixo da chuva do fim de tarde, com a roupa colada ao corpo, eu lembrei de outra definição de liberdade: estar confortável com quem a gente é.
*
Meu ano ficou mais bonito depois que terminei a leitura de Uma casa no fim do mundo, de Michael Cunningham. Gabriel, meu amigo, comparou esse livro com o filme Boyhood (Richard Linklater, 2014): a história de uma vida, da infância à idade adulta, sem muitos acontecimentos extraordinários. Embora os personagens de Uma casa no fim do mundo tenham, em algum momento, vivido experiências marcantes, a beleza da história está nos detalhes do cotidiano. Observada de perto, toda vida pode ser interessante, afinal.
É um livro contado por quatro vozes e eu me apaixonei por todas elas. Deixo aqui um dos trechos que me marcou:
Gostaria de lhe dizer algo que levava quase sessenta anos para aprender: que a gente deve aos mortos ainda menos do que aos vivos, que nossa única chance de felicidade — uma chance bem pequena — consiste em dar boas vindas à mudança.
*
É dezembro, ou verão, Natal, ou fim de ciclo e época de se entregar às coisas gostosas — use aqui o seu marcador de tempo preferido — e, por isso, presenteei-me antecipadamente com dois livros de Ana Martins Marques. Certeira que só, ela aconselha:
Amar
profundamente
mas testar
volta e meia
se ainda
da pé
Esse está em O livro das semelhanças.
*
E porque falei de verão e de poemas, encerro com Matilde Campilho, a poeta portuguesa com quem teço meus diálogos nestas escritas:
O Verão, rapazes — como disse C. Adams -
implica uma insistência nos mergulhos
e uma desistência breve das respostas.
Importante é passar as mãos pelas escarpas,
afagar o pescoço das andorinhas do mar,
verificar o oxigênio nos tubinhos de plástico
que ajuda a respirar na cala azul turquesa
e permitir que o Senhor ressuscite o sangue
dos espadartes a todas as manhãs de 29ºC.
Estas são as tarefas que devem ser realizadase — como disse Adams — bom mesmo é chegar
ao fim da estação sem nenhuma resposta.
Até mais!
*
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