O contrário da vida não é a morte, mas a falta de movimento

Carolina Bataier
Parachoque
Published in
7 min readApr 24, 2022

Quando li um texto de Lygia Fagundes Telles pela primeira vez entendi que, com a literatura, eu poderia inventar qualquer coisa. A misteriosa Daniela de O jardim selvagem — a mão sempre escondida debaixo duma luva; o casal a passear no cemitério em Venha ver o pôr do sol; e as amigas se maquiando para a festa de carnaval — enquanto o pai agoniza no quarto ao lado — em Antes do baile verde me provaram que, sobre a folha em branco, cabe todo tipo de delírio.

Sempre compreendi a literatura como espaço seguro para as mulheres. Antes de Lygia, Eva Furnari também me contou que os livros poderiam ser morada das minhas criações. Eu não tinha mais de sete anos quando minha mãe me apresentou A bruxinha atrapalhada. Além de amigas nas tardes silenciosas e solitárias numa cidade de três mil habitantes, eu e a personagem de Eva nos tornamos parceiras de trabalho nas minhas explorações. Eu estudava os traços e as histórias, sonhando em um dia fazer igual.

Mais crescida, abandonei os desenhos, mas não as palavras. Lygia me trouxe Clarice Lispector, expandindo minha prateleira de inspirações. Quando acordei e soube da morte de Lygia, no dia 03 de abril, senti gratidão imensa por ter vivido no mesmo espaço-tempo duma escritora dessa grandeza. Tristeza nenhuma pela perda, apenas tranquilidade pela vida longa e cheia de criações, presentes para quem fica.

*

Voltei do México poucos dias antes do adeus de Lygia. Foi uma temporada de descanso em Mazunte, um vilarejo às margens do Pacífico. Meu anfitrião, amigo de longa data, abandonou a publicidade para dedicar-se integralmente aos ensinamentos de yoga. A casa dele fica ao pé de um morro, no fim de uma ruazinha onde não entram carros. Do centro do povoado até lá, são 15 minutos de caminhada por estrada de terra.

Pouco depois de atravessar o falatório dos turistas diante do último restaurante no centro da vila, antes da subida rumo à minha hospedagem, vemos túmulos onde deveria haver uma calçada. O cemitério do povoado apresenta-se aos transeuntes sem nenhuma cerimônia. Flores, velas e imagens de santos enfeitam o caminho. A mesma arquitetura original e diversa presente em outros cantos: tijolos, cruzes de madeira e de ferro, azulejos de todas as cores.

Numa noite, depois de jantarmos no centro turístico, eu e meu amigo caminhávamos com calma pela escuridão da estrada. De longe, avistei as luzinhas. De perto, identifiquei sobre uma das sepulturas os pisca-piscas coloridos enganchados ao redor da estrutura de arame em formato de pinheirinho. Eu ri, meu amigo também, e tentou explicar: passado o Natal, alguém desistiu de tirar — ou deve ter esquecido.

Era uma noite quente, estrelada e silenciosa. Ao redor, o som da mata: grilos e pássaros noturnos. Por segundos, ficamos parados admirando a pequena árvore de Natal colorindo a escuridão da morte. Pensei na esperteza do costume mexicano de olhar para o fim da vida e fazer festa.

O México é a terra das caveiras coloridas e do Día de los muertos. O festejo mexicano coincide com nosso Dia de finados, também uma celebração. Quando criança, eu gostava de acompanhar meus avós até o cemitério, observar as variedades de flores expostas na calçada, passear entre os túmulos lendo as plaquinhas e exercitando meus conhecimentos de matemática.

- Aquele ali morreu com 99 anos! — contava, puxando a barra da saia da vó, fazendo ela olhar na direção onde apontava meu dedo. Ela, meditativa em sua tarefa de esfregar os azulejos, dava pouca atenção.

Ajeitávamos as florezinhas, acendíamos velas, encontrávamos conhecidos. Saindo dali, passávamos em alguma venda para comprar doces antes da volta para casa.

Despedi-me da infância e também da intimidade com a morte. Passei anos sem entrar em cemitérios. Então, com meu primeiro trabalho como jornalista, vieram os plantões do feriado de finados. Lembro de uma pauta deliciosa sobre os túmulos mais visitados do Cemitério da Saudade, o maior de Bauru. Passei uma manhã ensolarada entre cheiro de crisântemos e velas queimadas, escutando histórias de fiéis, devotos e apaixonados.

Noutro ano, visitei pela primeira vez um cemitério como aqueles dos filmes norte-americanos: um gramado imenso, árvores frondosas. No chão, separadas por metros de distância, as lápides enfileiradas, ornamentadas por arranjos tímidos. Como era dia de visita aos mortos, soava no ar uma música solene, frágil tentativa de preencher o vazio do descampado. Famílias se uniam em pequenos grupos e baixavam a cabeça, o olhar devaneando sobre as inscrições do concreto.

Não sei se esse modelo de cemitério, minimalista e asséptico, é coisa importada recentemente. Fiquei curiosa em me aprofundar nesses estudos, porque penso que o modo como cuidamos dos nossos mortos diz algo sobre nós. Agrada-me afastar da morte a solenidade e preenchê-la com festa, com dias para lavar túmulos e esbarrar conhecidos, trocar abraços, lamentos e risadas.

Nas noites mexicanas, em minhas longas conversas com meu amigo, concluí que a dor da morte não está ligada ao fim, mas a uma vida não aproveitada. Somos sugados por uma rotina onde não é raro faltar espaço para as pessoas queridas. Quando uma delas se vai, fica o vazio dos dias não compartilhados e das histórias deixadas para depois.

A origem indígena do Día de los muertos dá pistas sobre a prática de saudar a morte com festejos. Os povos originários nos ensinam muito sobre o respeito aos mais velhos, ao tempo e à vida. A morte, afinal, não é somente uma solenidade dolorosa, mas uma etapa da nossa existência.

No centro da Cidade do México, passeando pelas ruínas de Tenochtitlán, esbarrei com um pescador de gente. Tentei descrevê-lo de outras formas, mas essa foi a definição mais agradável. Parado no fim do mural de fotos onde lemos explicações sobre o sítio arqueológico, ele esperava em silêncio até perceber olhares curiosos e, então, fisgá-los com suas histórias. Segurava um livro do psiquiatra Carl G. Jung e desatou a falar sobre as ruínas. Lamentei meu espanhol ruim, que me permitiu compreender poucas frases. Dentre elas, esta, reforçada três vezes ao longo da conversa:

a pessoa que se sente útil é feliz.

O significado de útil vinha enlaçado a uma longa explicação sobre as funções de cada pessoa dentro de uma comunidade. A dele era estar ali, contando histórias.

*

“Há uma espécie de reflexo automático nisso de falar da morte e em seguida olhar o relógio”.

A frase é do livro A trégua, de Mario Benedetti. O romance, em primeira pessoa, apresenta um homem solitário narrando os dias enfadonhos antes da aposentadoria. Para quem escreve, esta obra é uma aula sobre construção de personagem. Enquanto leitora, sai dessa imersão um pouco amargada, o que, mais uma vez, prova o talento do autor.

*

Anos depois do primeiro contato com Lygia, quando outras tantas autoras já faziam parte da minha prateleira de inspirações, percebi que o sistema patriarcal estabelece limites também na literatura.

Apesar da minha formação como leitora ter nas raízes os trabalhos de muitas mulheres, compreendi que, assim como em outras profissões, as dinâmicas sociais determinam quem chega mais longe. Analisando a lista de vencedores de um conhecido prêmio da área, notei a massiva presença de nomes masculinos. Busquei informações sobre o processo de avaliação e soube da total isenção dos envolvidos. A comissão julgadora recebe os trabalhos inscritos sem qualquer identificação. Isso me levou algumas hipóteses.

É possível que, após anos de leituras majoritariamente masculinas no ensino formal, fiquemos acostumados ao estilo e às temáticas tratadas pelos homens. Por isso, tendemos a nos sentir confortáveis diante do trabalho desses escritores. Assim, ainda que o processo de seleção seja confiável, a leitura dos integrantes da comissão julgadora não é isenta de subjetividades.

Além disso, há o óbvio reflexo das estruturas sociais. Enquanto homens têm mais oportunidades de investir em cursos de escrita, revisões e leituras críticas, mulheres ainda se dividem entre o emprego fora de casa, as tarefas domésticas e a atenção aos filhos. O tempo é elemento essencial da escrita. Aliado ao dinheiro, garante melhor resultado no trabalho final. *

Mas nós seguimos escrevendo. E queremos ser lidas.

Em um texto divertidíssimo na publicação Mulheres que escrevem, a escritora Aline Valek deu o recado:

Vai achando que não existimos porque você desconhece nossos nomes. Como se desde Rachel de Queiroz e Clarice Lispector nenhuma outra mulher tivesse escrito algo de relevância no Brasil. Como se não tivéssemos uma Carolina Maria de Jesus. Uma Elvira Vigna. Uma Lygia Fagundes Telles.

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Aguardo ansiosa a chegada do livro da Tatiana Lazzarotto, Quando as árvores morrem, um romance sobre o luto, os afetos e os sentimentos de quem fica para dar a despedida.

Mesmo antes de ler, desenvolvi carinho por essa história, porque Tatiana compartilhou sua jornada no Twitter e numa newsletter deliciosa, cheia de carinho e de boas dicas para quem transita pelo universo da escrita. Foi bonito acompanhar o florescer desta escritora. Deixo como sugestão o Twitter da Tatiana para quem quer conhecer mais: @tati_lazzarotto

O livro está à venda no site da editora Claraboia.

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Escrevo sobre morte enquanto venho gerando uma vida — uma aventura imensa, cheia de enjoos, sono e aprendizados. E, entre o tema desta escrita e a nova vida crescendo dentro de mim, não há paradoxo algum.

Como ensina o ditado chinês, que chegou até mim pelo querido amigo Gabriel Guarino — e eu repito à exaustão:

o contrário da vida não é a morte, mas a falta de movimento.

Até a próxima.

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*Considero, aqui, somente o trabalho de escritoras e escritores cisgênero. A ausência de autoras e autores trans no mercado editorial possibilita outras reflexões. Há, ainda, sobre esse tema, os recortes de raça, bastante pertinentes. Se, para mulheres brancas, os desafios para se firmarem na escrita são grandes, para as mulheres negras são maiores. Esses são temas que cabem a outros — longos e necessários — debates.

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