Os perrengues da pessoa distraída na era digital

Carolina Bataier
Parachoque
Published in
5 min readMay 3, 2023

Não tenho sorte com celulares. Já esqueci em banco de ônibus, mesa de bar, derrubei numa escadaria e lá se foi o telefone quicando ladeira abaixo. Tive um furtado, certa vez, saindo de uma festa. Um belo rapaz me contava como era interessante viver num barco. Caí no canto do marinheiro e ele, sorrateiramente, deslizou a mão para dentro do bolso da minha jaqueta enquanto eu prestava atenção em seu largo sorriso. Só me dei conta minutos depois quando, no táxi, procurei o aparelho para checar as horas.

Por isso, só compro telefones de segunda mão. É uma decisão baseada em autoconhecimento. Algum teórico da comunicação falou sobre as tecnologias como extensão do ser humano, mas aqui somos resistência. Certa vez, num trabalho de reportagem, o cinegrafista se surpreendeu:

- Legal, você anota tudo à mão. Hoje em dia quase ninguém faz isso.

- Pois é, não confio no celular.

Nada contra quem confia. Admiro quem realmente faz bom uso das tecnologias, compra hd externo, entende tudo de aplicativo. Eu me apego — ou me acomodo — ao fato de não ser, como dizem, nativa digital. Uma parte de mim até se alegra quando passo alguns dias desconectada. Poxa, meu celular quebrou e eu perdi sua mensagem, desculpa — digo e sigo em paz.

Por isso, não fiquei triste quando, na última segunda-feira, meu iphone 7 comprado no mercado livre pela metade do preço escorregou dos meus dedos e quicou três vezes antes de parar no chão com a tela estraçalhada, brilhando como TV fora de sintonia, listras coloridas, apagões em preto e branco. Era hora, mesmo, de buscar um aparelho novo. Aquele começava a dar os sinais da despedida, estava sem memória, o toque da tela não funcionava bem.

Mas eu vivo perigosamente a era digital. Como Rita Lee twittou certa vez, a vida é curta para fazer backup. Pois é. Lembrei das inúmeras fotos da minha filha, todas naquele aparelho. Tentei usar um cabo para conectá-lo ao computador. Não funcionou. Fiquei chateada mas lembrei da belíssima frase de Guimarães Rosa, o que lembro, tenho. Tudo está salvo na memória feita de neurônios, consolei-me.

No dia seguinte, eu faria uma bateria de exames de rotina às 10h30 da manhã e deveria me manter em jejum. Organizei minha bolsa com um livro, documentos, cartão do banco, um creminho para as mãos e protetor solar. O que mais seria necessário, afinal?

Filipe, meu companheiro, me deixou em frente à clínica e foi procurar uma vaga de estacionamento, no centro de Planaltina, aquela onde João de Santo Cristo revendia o contrabando da Bolívia, impossível viver em Brasília e não cantarolar, vez em quando, uma música de Legião Urbana. Pablo e Santo Cristo devem ter se dado bem nos negócios, porque o centro de Planaltina é bastante movimentado, muitos carros, muita gente, um grande mercado em potencial.

- Tô sem celular, não esquece.

- Tudo bem, a gente se encontra.

Desci ligeira, barriga roncando, apressada para sair logo do consultório e comer um pão na chapa. Cheguei na hora exata dos exames e, diante do balcão, a atendente me lembrou que eu não vivo mais em 2010, aqueles tempos onde havia alguma vida offline.

- Preciso do código do plano de saúde para te liberar para os exames.

Prevendo isso, na noite anterior, eu havia instalado o aplicativo do plano de saúde no celular do Filipe e o código chegaria ali. Mas Filipe estava estacionando o carro e não sei quanto tempo iria levar. Talvez, ele não se lembrasse do aplicativo no celular dele com os meus dados e parasse em uma padaria para um café. Eu mesma não lembrei quando atravessei a rua me esgueirando entre os veículos no trânsito caótico demais para esta jovem senhora interiorana. Talvez, ele ficasse no carro escutando podcast antes de me procurar, afinal, eu faria uma bateria de exames, isso levaria algum tempo.

- Você quer ligar pra ele?

A atendente me passou o celular pela abertura da proteção de acrílico no balcão. Encarei o teclado. Na minha mente, vieram dois números: o telefone fixo da casa da minha falecida avó e o celular da minha mãe que, naquela hora, estaria numa sala de aula ensinando geografia para 35 adolescentes. Ela jamais atenderia. Eu tentei. Deu erro, porque minha memória me passou alguma rasteira. O número é outro, ou eu não sei mais fazer uma chamada interurbana. A atendente, esse anjo de paciência, interrompeu o questionário que fazia para uma senhorinha, diabetes? quantos filhos? amamentou? a senhora não lembra por quanto tempo? mais ou menos? e me sugeriu: vai bebendo água enquanto isso, você precisa estar com a bexiga cheia.

Meia hora e três copos d’água depois, barriga roncando, bexiga estourando, Filipe apareceu com o celular em mãos. Abri o aplicativo, não tinha código algum.

- Ah, é que esses exames são especiais e o código vai para o seu whatsapp.

- Eu tô sem whatsapp, meu celular quebrou.

- Tudo bem, eu mando pro seu e-mail.

- Não, calma, pode ser pra outro e-mail?

- Não, tem que ser pro e-mail cadastrado no sistema.

Filipe me estende outra vez o celular.

- Acessa aqui o seu e-mail.

Tento o login e o Google pede para inserir o código de segurança encaminhado para o meu celular. Minha barriga ronca, minha vista escurece de ódio, eu respiro fundo segurando o xixi. A santa atendente sugere ligar para o plano de saúde e se passar por mim para tentar receber o código por telefone. Eu topo.

Na sala de exames, o médico ajeita os equipamentos. Diante de um computador com tela aberta no Youtube, a assistente faz uma busca:

- Marina Elali?

- Não, é Mariana…

- É piseiro?

- Não, MPB.

- Marisa Monte?

- Não… Tenta Mariana Lima.

Eu me ajeito na maca, um pé pra cada lado, peitos escapando pelo avental, sugiro:

- Marina Lima?

- Isso!

À meia luz da sala de ultrassom, Marina Lima canta nem sempre se vê mágica no absurdo. Eu concordo, enquanto o médico tira as medidas do meu endométrio. Cantarolo com Marina, comento que escutei muito esse álbum na infância, meus pais eram fãs. Foi o primeiro CD que tivemos, lá nos anos 90. Que bacana, o médico, mais novo que eu, diz. A assistente segue em silêncio.

Eu saio dali decidida a passar para a minha agenda todos os telefones úteis.

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