Ostra feliz não faz pérola

Carolina Bataier
Parachoque
Published in
4 min readMay 31, 2022

Para quem escreve e para quem vai escrever o escritor num país desses? Nesse sentido, minha literatura é engajada.
- Lygia Fagundes Telles

Ando distante das atividades que exigem esforço e disciplina. Por isso, a newsletter de maio chega quase no último dia do mês. Manter os olhos na tela do computador me parece uma tarefa exaustiva diante de algo primordial: os pequenos prazeres cotidianos.

No sítio onde moro, os pés de mexerica estão carregados. Depois de dias nublados e de uma tempestade que quase levou nossa casa, o tempo firmou. Então, meus finais de semana têm sido dedicados à estender a canga no gramado, descascar mexericas e mastigar os gomos. Também tenho passado as manhãs no rio que, com as chuvas, ficou mais largo, formando um poço de água esverdeada.

A casa pode não aguentar outra tempestade. Chuvas como aquelas acontecem a cada dez anos, dizem os que vivem há muito tempo em Paraty. Neste intervalo de sol morno e céu azul, eu desacelero e retomo alegrias esquecidas na infância: desenhar, caminhar no gramado, descascar mexericas, fazer fogueira no quintal.

Na adolescência, a imagem de artistas com vida breve e transtornada me trouxe a mensagem de que eu não poderia ser escritora. Sempre fui um ser ordinário, sem grandes dramas pessoais. Alguns breves sofrimentos, mas muitas alegrias. Nasci com disposição para a felicidade.

Na vida adulta, encontrei inspirações a me dizer: é possível, sim, conciliar arte e alegria. Manoel de Barros, por exemplo, parecia saborear os minutos no meio do mato, no Pantanal.

Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
- Manoel de Barros

No documentário “só dez por cento é mentira”, o poeta diz:

“Comprei o tempo e pude me transformar num vagabundo profissional”

Cora Coralina teve vida longa — morreu aos 95 anos — e publicou o primeiro livro com mais de 70 anos. Sei pouco das dores e intimidades da poeta, mas encontro nela — que, além de escritora, foi doceira — o conselho saboroso:

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces.

Recomeça.

Os prazeres e alegrias não me impedem, contudo de concordar com com Rubem Alves:

Ostra feliz não faz pérola.

Para criar, eu sei, é necessário algum desconforto. Um grão de areia a roçar a suavidade da ostra, obrigando-a a cercar o incômodo com seus líquidos para proteger sua delicadeza interior.

“A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’. As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada”
- Antonio Candido

Em 2006, na cerimônia de inauguração da biblioteca na Escola Nacional Florestan Fernandes — construída pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) em Guararema-SP, o sociólogo e crítico literário Antonio Candido, em seu discurso, fez uma reivindicação primordial:

“(…) uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida”.

Quando penso no privilégio existente em poder aproveitar os finais de semana de sol no quintal, um grão de areia me incomoda. Amanhã é segunda-feira e o meu tempo passa a ser contado em horas, minutos e não mais pelo meu desejo de tomar café com calma e aproveitar a luz do sol. Enquanto saboreio meus deleites, penso em como estendê-los de modo a ser um pouco mais dona dos meus dias. A vida contemporânea não mede esforços para nos distanciar dos pequenos prazeres e nos apresentar inúmeras alegrias mediadas por dinheiro, nos convencendo a, cada vez mais, vender nossos minutos.

Meus deleites cotidianos são meu nácar — a proteção que a ostra produz para salvar-se do incômodo.

Cora e Manoel me ensinaram: a literatura é uma reivindicação do tempo. Para quem escreve, pois não se escreve sem se viver. A escrita é artesanal: necessita de pausas, respiros e inspirações.

E é também reivindicação do tempo para quem lê e exercita o deleite de perder-se em palavras alheias.

Que bom que você chegou até aqui.

Até o mês que vem.

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