Quem sabe de cercas não entende de comunidade

Carolina Bataier
Parachoque
Published in
7 min readMar 16, 2022

Toda vez que o Twitter me mostra anúncios sobre as maravilhas da energia eólica, eu lembro do Seu Luiz. Em julho de 2021, estive no sítio onde ele vive com a família, num trabalho de pesquisa sobre os avanços do progresso vazio — como canta Maria Bethânia — contra as pessoas que vivem da terra.

Luiz é uma dessas pessoas cuja vida é dedicada a produzir alimentos. Seu lar, de paredes verdes e flores na varanda, divide o terreno com a moradia da filha e a casa onde a família produz farinha de mandioca de modo artesanal.

Da terra modesta e bem cuidada, brotam abóboras, mandiocas, frutas e ervas. Dali, eu vi os moinhos de vento. De longe, parecem brinquedos. Despontam no horizonte como flores duras, sem beleza.

De perto, aos pés de um dos maiores, senti-me pequenininha. São imensos, barulhentos e agitam um vento frio, fazendo a gente apertar os braços contra o peito. Erguem-se às centenas pela região de Morro do Chapéu, na Bahia, onde Luiz vive com uma parte da família.

A chegada dos parque eólicos mudou a rotina das comunidades rurais. Antes, o quintal para aquela família de roceiros não tinha limites. Perto do Natal, caminhavam mato adentro colhendo lapinha, planta usada como enfeite no presépio. No caminho para o rio onde costumavam se banhar, há caminhões levantando poeira. Por causa do tráfego e das obras, um córrego virou lamaçal. Os passeios para colheita de lapinha ficaram restritos porque os engenheiros — homens vindos de longe — demarcaram o vasto terreno. As placas nas cercas dão o recado: trata-se de medida de segurança.

Ao fundo da casa de farinha, a hélice de um moinho

Uma pessoa acostumada aos muros urbanos há de dizer que cercas são necessárias para estabelecer limites. Na cidade, espalha-se a informação de que a energia eólica é limpa e econômica. Assim, o progresso invade quintais entoando o mantra de que é preciso buscar novas formas de fazer as máquinas girarem.

Mas, desconfio, quem sabe muito de cercas não entende de comunidade; e a relação respeitosa entre homem e terra escapa à compreensão do progresso feito para as máquinas.

Antes de terminar este texto, eu fiz uma pausa para ler o ensaio Uma revolução de valores — a promessa da mudança multicultural, do livro Ensinando a transgredir, da bell hooks. Na página 42, a autora fala sobre a distância entre discurso e prática:

(…) vejo que nos últimos vinte anos conheci muita gente que se diz comprometida com a liberdade e a justiça para todos; mas seu modo de vida, os valores e os hábitos de ser que essa gente institucionaliza no dia a dia, em rituais públicos e privados, ajudam a manter a cultura da dominação.

Adiante, bel cita Martin Luther King: “Temos de deixar de ser uma sociedade orientada para as coisas e passar rapidamente a ser uma sociedade orientada para as pessoas”.

A casa de seu Luiz está vazia. Lá dentro, ficou somente o fogão à lenha. Os móveis foram levados às pressas para a casa de farinha, que agora serve de moradia temporária. Para instalar as torres de energia eólica, é preciso alterar o solo e isso é feito com explosões. A terra trema, o barulho ensurdece. E as paredes da casa do Seu Luiz foram trincando. Quando os técnicos e engenheiros fizeram as primeiras visitas à região para mapeamento da área e contato com moradores, o risco às construções não foi mencionado.

A empresa mandou funcionários para verificarem as rachaduras e providenciar reparos. Quando cheguei para a visita, Luiz estava irritado, conversando com um grupo de cinco homens uniformizados. Eles estiveram ali para arrumar a fiação, mas apresentaram uma solução que, aos olhos do dono da casa, não duraria muito tempo. O agricultor pediu que retornassem com uma proposta decente para a casa construída com mãos e suor.

Seu Luiz me convidou para entrar. Seguiu na minha frente, mostrando todos os cômodos e apontando no alto, perto do teto sem forro, as rachaduras descendo como veias pelas paredes.

Dos cinco filhos, apenas uma mora na pequena propriedade rural. A casa do agricultor, com quatro quartos, foi feita aos poucos: a cada par de filho que partia, o homem erguia mais um cômodo.

Assim, pode reunir todo mundo em época de festa.

Eu, de costas, em conversa com seu Luiz. Ao fundo, no horizonte, é possível ver os moinhos de vento.

*

Escrevi este texto com as informações guardadas pela minha memória. Estou de férias, no sítio onde vivem meus pais, tias, primos, avós e irmão. Meu caderno com as anotações da visita ao Morro do Chapéu ficaram em minha casa. Por isso, não falo do sobrenome do Seu Luiz, nem do tempo de moradia na pequena propriedade rural. Sei que são muitos anos, dezenas.

O nome da companheira de seu Luiz também ficou nos meus manuscritos. Foi ela quem me contou sobre a colheita de lapinha e de ervas para chás, prática agora comprometida pelos limites impostos pelos parques eólicos. A colheita de lapinha era ritual de alegria, diversão e partilha.

Junto da minha família, senti a necessidade de escrever sobre essa visita. De onde estou agora, vieram meus primeiros aprendizados sobre comunidade. Quando criança, vi meu avô plantar frutas, raízes, criar animais. Minha avó cuidava de uma barraquinha na beira da estrada, onde vendia queijo, frutas e mel. Era uma construção pequena, de madeira, com varanda no fundo, rodeada por pimenteiras e amoreiras. Eu, criança, passava as tardes deitada na rede, enquanto minha avó atendia os viajantes.

Tinha dias, Dona Maria vinha ajudar. Era amiga da minha família e vivia num sítio nas redondezas. Passávamos a tarde conversando. Quando chegava cedo, trazia uma marmita enrolada em panos de prato. Lembro dos dedos gordos da Dona Maria colhendo as pimentinhas verdes do quintal, depois amassando com o garfo junto do feijão, misturando ao arroz. Era tudo muito simples e, por isso, prazeroso.

Certo dia, essa senhora me pegou pela mão e caminhamos pelo acostamento da rodovia até chegar a uma porteira diante dum gramado vasto. Visitamos casinhas de madeira: a dela, onde o marido martelava alguma coisa sentado no degrau da porta de entrada; e a casa das vizinhas. Uma me ofereceu bolo de fubá. Noutra, sentei diante da porta para beber limonada.

Ainda hoje, quando, pela janela do ônibus, vejo o sítio onde vivia Dona Maria, abro um sorriso. As casinhas me levam de volta àquela tarde de aventura imensa, o horizonte crescendo diante dos meus olhos de menina. As cercas serviam mais para segurar vacas e cavalos. As pessoas trocavam visitas e alimentos. Gastávamos sola de sapato de um lugar a outro, colhíamos plantas e frutas: a terra e o tempo eram coisas muito nossas.

Os homens responsáveis pela energia limpa — e por um mundo que não pode parar — deixaram no quintal de Seu Luiz um agradecimento pelas cercas instaladas e pela paciência com as explosões. Talvez, seja um pedido de desculpas pela casa trincada, pelo espaço invadido, pela forma como chegam sem compreender o ritmo dos passos da vida em outros cantos. Nos papéis, chamam de contrapartida: um jardinzinho, com tijolos de concreto para serem organizados em formato de mandala. Foi montado diante da casa, do lado oposto do pomar e das plantações. Seu Luiz me mostrou os pequenos círculos da mandala — onde as flores ainda não brotaram — sem conseguir conter o riso debochado.

*

A Nati Almeida escreve coisas bonitas no Medium. Mas foi no Instagram dela que eu li a lição ensinada por muita gente boa, entre eles a bell hooks: “sem comunidade, não há libertação”.

*

Como as coisas despencam de penhascos. Como Irene, a primeira paciente que ele perdeu; dera entrada ao pôr do sol, rindo, e estava fria ao amanhecer. A velocidade. A velocidade atordoante da morte. (Ou era o contrário? A velocidade atordoante da vida?) Ele é médico, devia saber, o corpo se estraga, nada dura, nem uma vida, por que um amor?, como a perda funciona no mundo e o que acontece a quem em quais quantidades, “a única constante é a mudança” e aí por diante.

Esse trecho é do livro Adeus, Gana (2021), de Taiye Selasi. A história começa com a morte súbita e precoce do médico Kweku Sai. Nascido em Gana, viveu nos Estados Unidos, onde criou os cinco filhos. Com a partida do pai, cada um deles, com suas histórias e traumas, refaz o caminho até o país de origem da família.

É uma história sensível, cheia de dores e belezas, sobre as raízes e os laços que nos guiam na tecitura das nossas vidas.

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Encerro com um agradecimento à Comissão Pastoral da Terra, especialmente Cláudio, Terezinha e Edione.

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Até mais!

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