A estrangeira

Larissa Lara
Paradoxos
Published in
3 min readNov 12, 2017

Hoje eu acordei menos minha; menos real; mais etérea

Por Larissa Lara

“A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo.”

Simone de Beuvoir

Crédito: Larissa Lara

Quando me tornei mulher, eu não sei. Cultural, religiosa ou psicologicamente, terei respostas diversas. Hoje, me senti mais presa ainda a essa condição. Essa sensação de estranheza se deu pela aprovação no Congresso da lei que proíbe interromper a gravidez mesmo quando há má formação do cérebro do feto, em casos de risco à gestante, ou estupro. Ou seja, a mulher só tinha um relativo direito ao seu próprio corpo quando ele já fora violado. Agora, nem isso.

Assim, 18 homens decidiram o destino de milhares de mulheres. O único voto contra foi de uma deputada, Erika Kokay. As leis são feitas por homens e em favor deles, que afirmaram que a vida começa durante a concepção e não no nascimento.

Me imaginei, então, numa conversa com Simone de Beauvoir. Ela, a me dizer que somos o “inessencial” perante o homem, porque somos o Outro. Nossa existência fora colocada em relação a ele, definido como ser humano. Pelos mitos que ainda vivemos, sabemos que somos comparadas às fêmeas: indefesas, instáveis, com o objetivo de procriar. Era dessa forma que atacavam Dilma Rousseff durante o impeachment e também reclamavam da dureza dela, característica associada ao homem. “Quando ela comporta-se como um ser humano ela é acusada de imitar o macho”.

Simone parecia menos espantada que eu pelo retrocesso que a sociedade vive. Calma, tomava seu café, enquanto falava que a mulher sempre fora e ainda é vista como um objeto e seu destino é ser mãe. O termo e sua representatividade muda constantemente ao longo da história, mas a essência, o olhar, está cristalizado. Foi aí que me reconheci mulher.

A escritora Giulia Galeotti conta as mudanças do papel da mulher desde a Antiguidade, quando o feto era considerado uma parte do corpo feminino e, por isso, um assunto privado das mulheres. Quando essa percepção começa a mudar, não é a favor do direito do feto, mas sim porque ele é visto como propriedade do pai por ser um herdeiro em potencial.

No século XVIII, a mulher passa a ter um dever com o Estado, de formar futuros cidadãos, mas não tem o direito de exercer sua própria cidadania votando. Já no século XX, em especial a partir dos anos 1960, com a descoberta da pílula anticoncepcional, a mulher passa a ter controle de sua fertilidade e há a separação entre sexualidade e maternidade. Portanto, o aborto passa a ser visto como símbolo da retirada do direito da mulher sobre seu próprio corpo.

Tirar esse direito é desfigurar a imagem da mulher perante ela e a sociedade. Quanto mais baixa for a camada social a que ela pertence, menores são seus direitos. Ela já recebe menos formação, oportunidade e informação. A gravidez não planejada a deixa fora do mercado de trabalho, o que amplia a desigualdade social. Além disso, o nível de insegurança a que é exposta é extremamente alto, e ela sofre todo tipo de abuso, como o sexual, que as leis calam. Em maio deste 2017, já discutiam diminuir a pena em alguns desses casos, considerado, por alguns homens, como menos graves. Então, direito de quem e qual vida?

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