A primeira vez em casa

A sensação de pertencer pela primeira vez preenche vazios que muitas vezes nem sabíamos que existiam

Ana Carolina Huertas
Paradoxos
3 min readNov 13, 2020

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Por Carolina Huertas

Crédito: Carolina Huertas

Frio na barriga e ansiedade pelo novo. Era esse meu sentimento antes de sair de casa. 14 de janeiro de 2019, meu primeiro dia como aluna em uma HBCU.

Referências em cultura negra nos Estados Unidos, as Historically Black Colleges and Universities (HBCU) são as universidades historicamente negras que foram criadas na época da segregação racial do país, quando os brancos não permitiam que pessoas pretas estudassem em suas universidades.

No Brasil pouco se ouve falar sobre a segregação racial na educação, mas no colégio eu sempre fui uma das poucas alunas negras da sala de aula e eu nunca vou esquecer meu primeiro dia na faculdade brasileira, onde eu era a única no meio de 65 alunos. Democracia racial, eles dizem.

Pisei no campus da Savannah State University, a HBCU mais antiga do estado da Geórgia, por volta das 7h da manhã. Fazia muito frio, algo por volta dos 2ºC, mas tenho quase certeza de que o frio da minha barriga era maior.

No caminho para minha sala de aula, eu parecia uma criança entrando pela primeira vez no parque de diversão, meus olhos brilhavam. Pessoas de diversos estilos, tonalidades, cabelos, tranças e traços. Era como se tudo de alguma forma começasse a fazer sentido.

Enquanto no Brasil eu convivia com uma maioria de alunos brancos, sempre sendo a exceção, lá nós éramos a maioria, nem me lembro de ter visto algum aluno branco no caminho. Nada contra, mas foi uma sensação que eu nunca tinha sentido antes.

Um sentimento de lugar seguro, livre e de pertencimento. Liberdade e acolhimento, sem ninguém ter que dizer alguma palavra, só por estar ali dividindo o mesmo espaço. Queria ficar para sempre ali, vazios que eu nem sabia que existiam dentro de mim foram preenchidos.

Minha última aula do dia foi “Afro-americanos na mídia”, e eu nunca vou esquecer as primeiras palavras do meu professor: “Nossos antepassados foram proibidos até de ler e escrever, mas hoje nós estamos aqui para estudar nossa história e não nos calarmos no futuro”. Deu vontade até de tatuar essa frase.

Aquele dia voltei para casa em êxtase, parecia uma realidade paralela. Sem dúvida um dos dias mais felizes da minha vida. Mas o que ecoava na minha cabeça era: como nós não temos isso no Brasil?

Eu nasci no país mais preto fora da África, onde mais de 50% da população é negra, mas tive que ir morar a mais de 7 mil km de distância de casa para ter meu primeiro professor negro, ter mais de três pessoas negras na minha sala de aula e aprender algo sobre o povo negro além da escravidão. Um abismo de desigualdade que nem todo mundo percebe.

Ê Brasil! E pensar que tem gente que acredita na sua “democracia racial” e ignora os imensos vazios da sua história.

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