Bliss e a luta das meninas pretas

Beatriz Gois
Paradoxos
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3 min readSep 22, 2017

A importância da representatividade para o empoderamento das meninas superpoderosas da vida real

Foto: Beatriz Gois

Por Beatriz Gois

Açúcar, tempero e tudo o que há de bom. Esses foram os ingredientes perfeitos para criar As Meninas Superpoderosas. Mas acidentalmente o professor Utônio adicionou um elemento extra na mistura… uma personagem preta!

Quem foi criança nos anos 90 já deve ter assistido ao famoso desenho das Meninas Superpoderosas (The Powerpuff Girls). Criado em 1998 e exibido até 2005, o desenho retornou em abril de 2016 como um reboot, produzido agora pelos estúdios da Cartoon Network. Apesar da grande semelhança gráfica com o antigo, o desenho apresenta algumas boas mudanças, a começar por suas integrantes.

Além das já conhecidas Blossom (Florzinha), Bubbles (Lindinha) e Buttercup (Docinho), uma irmã sumida das meninas surge no especial “Power of four”: Bliss (que em tradução direta é algo como Felicidade, mas ganhou o nome em português de Estrelinha).

Bliss já é uma adolescente. A explicação é que ela foi uma experiência do professor, anterior às meninas. Bliss nunca soube controlar muito bem as emoções, e em uma de suas explosões foi embora de casa. Ah, você quer entender por que tudo isso ganhou tanta repercussão? Ora, porque Bliss é preta!

Imagens: Cartoon Network / Canal do YT: Folha de Pernambuco

O episódio em que Bliss surge foi exibido em 17 de setembro nos Estados Unidos e, no mesmo dia, em um post da página do Cartoon, no Facebook, comentários de ódio surgiram. Ao ler esses comentários fica muito nítida a falta de criatividade das pessoas para tentar mascarar seus preconceitos e justificar seus pensamentos retrógrados.

Os comentários têm em sua maioria duas justificativas: a primeira é de que Bliss não seria a quarta irmã pois, antes dela, existiu Bunny, uma irmã criada pelas próprias Meninas, mas que acabou explodindo ao final de um episódio. Outra justificativa para o desagrado em relação à nova personagem é que a história contada não faz o menor sentido, e isso é uma forma de estragar a infância de milhares de pessoas que cresceram assistindo ao desenho.

Aqui no Brasil não foi diferente. Muitas páginas começaram a fazer textos sobre o caso — principalmente páginas do mundo geek —, e os mesmos comentários racistas e homofóbicos se repetiram, agora em português.

Prints dos comentários em uma página geek

Mas afinal, o que é mais importante? Preservar a infância de adultos mimados ou fazer com que a nova geração se sinta representada?

Bliss está sendo o exemplo, em desenho, de todo o preconceito que meninas pretas sofrem, principalmente na adolescência, fase em que a aparência é extremamente importante. Não saber como arrumar o cabelo, ou o tom certo da maquiagem, significa não ter influências, não ser representada… e tenho certeza que muitas meninas da minha geração já passaram por isso.

O objetivo de Bliss, mesmo que discreta e tardiamente, é fazer com que essa falta de representatividade seja preenchida. Já passou da hora de nossas heroínas nos desenhos terem nossa cara. E se precisar ser preta, gorda, cadeirante ou gay, que seja!

Foto: Beatriz Gois

Sempre gostei muito do desenho, e só depois de mais velha parei para pensar na importância de desenhos como esse para as meninas. Quando as mulheres são as heroínas e não as donzelas indefesas, alguma menina, em algum lugar, passa a acreditar que ela pode salvar o mundo também. Que ela é poderosa o suficiente para isso. E aí, entramos na questão de identificação com o personagem. Eu já escutei muitas vezes, quando pequena, que não podia ser a Florzinha porque meu cabelo não era vermelho. Mas eu podia ser a Docinho. E uma criança preta? Seria quem?

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Beatriz Gois
Paradoxos

Jornalista até a alma e UX writer curiosa em formação. Sempre de olho nos freelas e em quem pode me trazer paz :)