Como a ausência de pretos na comunicação traduz a nossa representação do que é ser negro

Apesar de serem 56% da população brasileira, pretos e pardos ainda não têm espaço representativo nos canais de comunicação no país

Kayam Mendes
Paradoxos
3 min readDec 18, 2020

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Divulgação

Por Kayam Mendes

Durante os cinco anos de graduação no Mackenzie, sempre me foi incômodo olhar ao meu redor e perceber a falta de diversidade de tons de pele. Na minha turma, por exemplo, somente duas pessoas se declaram como pretas ou pardas, 1,24% da turma de 62 alunos que se formou na metade de 2020. Eu, que sempre pegava o caótico 8700–10 (Praça Ramos — Term. Campo Limpo) para ir e voltar da faculdade e sempre transitava entre a zona Sul e o centro de São Paulo, percebia e refletia sobre como os tons de pele eram transformados entre um espaço e outro — e às vezes entre um ponto e outro. A Pesquisa Relações Raciais 2020, publicada pelo Ibope em novembro, ajuda a ilustrar um pouco da percepção da acessibilidade. Ela aponta que 77% dos entrevistados perceberam diferenças no tratamento de pessoas pretas dentro de faculdades e universidades; mas o Praça Ramos também não escapou, ou se manteve com uma porcentagem amigável para os pretos. Isso porque o estudo demonstra que 70% dos entrevistados sinalizam tratamentos diferentes entre pretos e brancos no transporte público da cidade. A pergunta que fica é: como a maior cidade do país, em que a maioria da população se declara preta ou parda, não consegue trabalhar alternativas para mitigar o racismo estrutural tão profundamente implantado na nossa sociedade? Não digo em mudar da água para o vinho, afinal, por ser um fenômeno cultural, dependemos de tempo e de esforços contínuos. Mas, só de olhar para a minha turma a sensação que fica é a de que nem sequer tentamos algo.

Como jornalista, eu puxo para nossa área de estudo e atuação esta discussão, e é bizarro sobre como os padrões estruturais se reproduzem: os vazios narrativos que construímos com a ausência de pretos na comunicação e como isso reflete na representatividade dos nossos produtos finais. Uma vez ouvi exatamente isso da Amanda Rahra, da Énois — uma mina branca e do Centro. Ela dizia que, se o jornalista tem de casa até a redação para pensar numa pauta e se a maioria dos os jornalistas mora no centro, é óbvio que as periferias acabam menos retratadas nos produtos midiáticos.

Já os pretos que atuam na comunicação, no jornalismo e na publicidade ainda precisam ser resistência. Isso porque, segundo a pesquisa Raça nas Redações, a remuneração destinada aos pretos na comunicação se limita, majoritariamente, a três salários mínimos — enquanto os brancos ocupam mais cargos de liderança e ganham bem mais que três salários. A pesquisa também aponta que os negros que atuam no mercado de trabalho da comunicação são, em sua maioria, freelancers. Ou seja, nem atuam efetivamente e com frequência na transformação das narrativas.

Alguns dias atrás assisti ao filme brasileiro “O Juízo”, estrelado por Fernanda Montenegro, Criolo, Felipe Camargo, Lima Duarte, Carol Castro etc. O filme mostra como a família herdeira de uma fazenda era assombrada na Casa, pois no passado seus ancestrais (os senhores de engenho) maltrataram e assassinaram negros escravos. Em termos de drama e terror, o filme deixa muito a desejar… mas nos custa pouco pensar porque a construção narrativa de que a senzala, ou até mesmo os cemitérios indígenas, é que seriam amaldiçoados — e não a própria Casa Grande. O vazio e as frestas deixadas pela ausência de pretos na comunicação brasileira é, em si, um enorme desserviço, pois reproduz os padrões históricos e estruturais de narrativas, e como estas retratam a figura do negro na sociedade. Mais do que simplesmente preencher o organograma, a presença dos pretos é uma provocação e um convite à ressignificação da forma como representamos o negro.

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